Um homem que "reinventou" a ópera

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Gérard Mortier nos tempos do Festival de Salzburgo dr

A notícia da morte de Gérard Mortier não é inesperada, mas nem por isso é menor a sensação de uma perda imensa, tão extremamente marcante e frutífero foi o trabalho de renovação que ele operou como director artístico de teatros de ópera e de outras instituições culturais.

Este belga flamengo de origens modestas – o pai era padeiro – foi um renovador ímpar da programação operática, mas mais, da res publica cultural. Moviam-no um princípio de paixão – Dramaturgia de Uma Paixão é, aliás, o título do seu livro de reflexões sobre a ópera – mas também a aguda noção de que os fundamentos políticos do género ao longo da sua história estavam perdidos numa prática de instituições e consumos culturais estética e socialmente conservadores, para não dizer mesmo – e ele disse-o – “reaccionários”.

Mortier afirmava que não tinha predilecção nenhuma por “polemizar” – não fez ele outra coisa!

Em 1981 estreou-se do modo mais radical como director artístico do La Monnaie de Bruxelas. O que tinha sido basicamente esse teatro nos 20 anos anteriores? A residência do Ballet du XXe Siècle de Maurice Béjart. O que fez ele? Prescindiu – ou “pôs fora” – o “monstro sagrado”, com uma imensa polémica, a primeira de muitas.

Ao longo dos anos 1980, Mortier fez do La Monnaie uma das mais destacadas óperas da Europa, nomeadamente desenvolvendo uma renovação com encenadores como Patrice Chéreau, Luc Bondy, Herbert Wernicke, Peter Mussbach ou Ursel e Karl-Ernest Herrmann.

Uma década volvida ocorreu o grande “golpe de teatro”: ei-lo escolhido para defrontar a “estátua do Comendador”, sucedendo a Karajan como director do Festival de Salzburgo, com três objectivos expressos, renovar a programação, suscitar novos públicos e inscrever a instituição no presente. No seu esmagador conservadorismo, os meios culturais e os media locais e austríacos rangeram os dentes, mas aquele homem de aspecto frágil haveria de lhes fazer face com uma determinação surpreendente.

Logo ao começo, em Julho de 1992, houve polémica: Riccardo Muti retirou-se da direcção de La Clemenza di Tito, de Mozart, em protesto contra o que seriam os “típicos excessos dos encenadores modernos”, no caso os Hermann. Os cães ladravam mas a caravana passava: o espectáculo de abertura foi emblemático, Da Casa dos Mortos, de Janácek (compositor que nunca tinha sido representado em Salzburgo!), encenação de Klaus-Michael Grüber e direcção de Claudio Abbado, e sobretudo duas produções que deixariam rendidos e em delírio os críticos e o público internacionais: o Saint François d’ Assise, de Messiaen, por Peter Sellars e Kent Nagano, e a Salomé, de Strauss, por Luc Bondy e Christoph von Dohnanyi, daqueles raríssimos momentos perante os quais “sabíamos” estar a ter o privilégio de assistir a espectáculos “históricos”.

Seguir durante dez anos essa renovação do festival foi uma experiência apaixonante – de resto substancialmente acompanhada nas páginas deste jornal. Regressando às origens, no 1.º pós-guerra, com Hofmannsthal, Strauss e Reinhardt, Salzburgo era de novo um epicentro cultural da Europa, de resto em várias vertentes, com a “reactivada” programação teatral dirigida por Peter Stein. E as polémicas continuaram, até ao fim, quando Mortier “ofereceu” ao público austríaco o seu “querido” O Morcego, de Johann Strauss, mas numa provocatória encenação de Hans Neusfeld.

De proclamar que “A Ópera de Paris não tem o público que merece”, quando deixou a direcção daquela, ao confronto com o governo espanhol que o levou a precipitar a saída do Teatro Real de Madrid, o rasto das polémicas continuou, até com o risco de obscurecer o mais importante: Gérard Mortier não foi apenas um director artístico de ópera mas um grande europeu que incessantemente procurou reinventar modernamente um sentido para a ópera e as artes na polis.

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