“O pior ainda está para vir na Venezuela”

Analista de Políticas Públicas da América Latina considera que Governo de Nicolás Maduro está firme no poder, com o apoio do Exército e a cumplicidade da região. Mas a situação económica continuará a deteriorar-se.

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Soldados junto a um mural de Hugo Chávez Jorge Silva/REUTERS

Juan Carlos Hidalgo, analista de Políticas Públicas da América Latina no Centro para la Libertad y Prosperidad Global do Cato Institute, em Washington, acompanha há décadas a situação na Venezuela. Em entrevista ao PÚBLICO, elenca as principais razões que levaram à deterioração da economia e à conflitualidade social, e manifesta a sua preocupação com o prolongamento do clima de confronto.

Na sua opinião, os protestos de rua na Venezuela são um fenómeno de reacção à crise económica, ou representam um sentimento mais profundo de rejeição do regime?

É mais profundo. Desde a morte de Hugo Chávez, em Março passado, a economia venezuelana experimentou uma séria deterioração. Com a escassez de dólares, o tipo de câmbio no mercado negro disparou. A inflação disparou: oficialmente, ficou nos 56% em 2013, embora cálculos estimem que a inflação verdadeira anda por volta dos 330%. Há uma escassez generalizada de produtos: segundo o índice de escassez que produz o Banco Central da Venezuela, mais de um em cada quatro produtos básicos não está disponível nas prateleiras dos supermercados.

Além disso, há o problema da criminalidade, que representa outra grave deterioração da qualidade de vida dos venezuelanos. A Venezuela é um dos países mais violentos do mundo, com quase 25 mil homicídios em 2013 e uma taxa de homicídios de 79 assassinatos por cada cem mil habitantes, uma das mais altas do mundo. A título de comparação, no México é de 22, a da Venezuela é três vezes superior.

Tudo isto contribuiu para que os venezuelanos simplesmente se tenham fartado – a classe média, mas não exclusivamente porque também a população dos bairros pobres está a protestar. E também fez com que as pessoas pensem que simplesmente já não têm nada a perder em ir para as ruas e protestar. Por isso, penso que o que está a acontecer é mais profundo do que um protesto temporário, creio que as pessoas não vão querer ir para casa e ficar à espera da mudança.

Há alguma relação de causalidade entre a morte de Chávez e a deterioração da situação económica? Ou atribui responsabilidade à gestão do Presidente Nicolás Maduro?

Não é por acaso. Depois da sua eleição de Outubro de 2012, Hugo Chávez aumentou dramaticamente a despesa pública, que já era enorme e cresceu mais 30%. Com a agravante de uma baixa dos preços do petróleo: não colapsaram, não houve uma quebra dramática, mas têm lentamente vindo a diminuir. E a produção da estatal petrolífera PDVSA também tem vindo a diminuir: em 2002 produzia 3,4 milhões de barris por dia e agora produz 2,3 milhões, e isso significa menos divisas.

Com a morte de Chávez, o poder caiu nas mãos de Maduro: uma despesa pública insustentável, com receitas cada vez mais esquálidas. Muita gente esperava que as vozes mais pragmáticas dentro da liderança venezuelana assumissem medidas económicas paliativas, mas o que vimos em Caracas nos últimos 12 meses foi a paralisia absoluta. Entretanto, Maduro declarou uma guerra contra o comércio por supostamente estar a aproveitar-se da inflação. Não creio que se possa dizer que Maduro é mais incompetente do que Chávez na gestão económica; simplesmente herdou uma bomba relógio e a única coisa que fez foi recrudescer o intervencionismo e as políticas que conduziram a Venezuela a esta situação.

O Presidente obteve poderes especiais da Assembleia para encetar medidas extraordinárias de correcção dos desequilíbrios, e avançou com várias iniciativas económicas.

Certo. Maduro pode governar por decreto, e foi assim que emitiu todo o tipo de leis, como a lei do preço justo. Mas o sector produtivo venezuelano está arrasado, depois de 14 anos em que ocorreram mais de mil nacionalizações e expropriações e foram impostos todos os tipos de controlos e restrições – cambiais, laborais. Isso veio acelerar o processo de colapso da economia, que só se sustém pelas receitas petrolíferas que cada vez são menores. Brevemente chegará um ponto de ruptura.

Se acontecer uma ruptura, o Governo de Maduro fica em risco? Até agora a contestação não ameaçou a manutenção do Presidente no poder.

O Exército e a Guarda Nacional estão absolutamente do lado do Governo, e é muito difícil conceber um cenário em que os generais e as tropas, que foram privilegiadas com todo o tipo de benefícios, tomem o partido do povo na rua. Além disso, a rua está desarmada e não conta com nenhum tipo de apoio internacional: nenhum país da América Latina manifestou apoio aos protestos, os únicos que tiveram declarações tímidas foram o Chile e o Panamá. Nesse sentido, Maduro pode reprimir os manifestantes sem se preocupar com a reacção internacional, ou em ser deposto.

A maior ameaça de Maduro não é a oposição na rua, mas o próprio chavismo. Recordemos que o chavismo é uma união de facções que já foi descrita como um ninho de lacraus. Não se entendem mas mantêm-se juntos para continuar a lucrar com a grande corrupção que existe em redor das receitas petrolíferas.

O presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, é quiçá a maior ameaça para Nicolás Maduro. Foi golpista em 1992 com Chávez, representa a ala militar do chavismo e muitas pessoas dentro do movimento identificam-se com ele. E Nicolás Maduro – que não desperta a mesma lealdade e adoração que despertava Chávez – representa a ala civil, muito ligada a Cuba. Muita gente especula que foram os irmãos Castro que escolheram Maduro como sucessor. Aqui o factor Cuba não é despiciendo: os serviços secretos cubanos têm uma presença muito forte na Venezuela e estão a controlar muito de perto qualquer tipo de dissidência dentro do chavismo. Os cubanos espiam abertamente o espectro chavista, e denunciam qualquer dissidência ou movimento em falso dentro do chavismo, o que torna difícil qualquer tipo de rebelião contra Maduro.

Mas se os protestos de rua se prolongarem, criando uma situação de total paralisia no país, e captando a atenção dos media internacionais, o Governo será obrigado a reagir para recuperar o controlo da situação, ou não?

O Governo fará tudo o que for possível fazer para se manter no poder. Depois, novamente, temos o factor Cuba: a economia cubana depende do subsídio [petrolífero] venezuelano, que representa cerca de 6% do PIB da ilha. Sem esse apoio, a economia cubana poderia implodir e pôr em perigo o regime dos irmãos Castro. Daí que nem os venezuelanos no Governo em Caracas nem os irmãos Castro vão permitir em nenhuma circunstância que o poder lhes escape das mãos, e para isso recorrerão a qualquer tipo de repressão a que tenham de recorrer.

Por isso é que eu digo que o pior ainda está para vir na Venezuela. Por um lado, as pessoas pensam que estão numa situação que não tem saída. Ou então pensam que a única saída é continuar na rua, porque a via democrática está fechada, já que o regime recorre abertamente à fraude, e a via institucional não é possível porque todos os poderes são controlados absolutamente pelo chavismo. Mas por outro lado, o Governo controla o poder de fogo, e não vai temer utilizar esse poder. O que pode acontecer é o agravamento da situação e um incremento da quantidade de vítimas mortais destes confrontos.

Nesse cenário, que papel pode ter a oposição?

A oposição está dividida, entre os que crêem que se deve sair à rua, e os que consideram que os protestos devem ser canalizados por vias institucionais. A primeira facção é representada por Leopoldo López e Maria Corina Machado, e a segunda por Henrique Capriles. Os acontecimentos destas duas semanas dão a entender que a ala da rua é a que está a dominar. Henrique Capriles passou a segundo plano e a figura de Leopoldo López fortaleceu-se muitíssimo, principalmente depois da sua detenção. Portanto a oposição endureceu, chegou à conclusão que o único caminho que resta é a desobediência civil.

 E na sua opinião, o conflito vai durar?

Vai durar mais, porque o Governo está firmemente no poder com o apoio incondicional do Exército e a cumplicidade da região. A situação económica continuará a deteriorar-se, mas não vejo que haja condições para a queda do Governo ou a mudança de regime. Essa será uma questão de médio prazo; não vejo que tenha uma resolução rápida, como aconteceu por exemplo na Ucrânia.

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