Ken Loach não quer fazer parte do sistema

O veterano realizador britânico, mestre do realismo social engajado, esteve em Berlim para receber um Urso de Ouro honorário. Mas não tem ilusões: o seu cinema não marca a diferença, e o verdadeiro artista tem que estar de fora do sistema.

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Ken Loach aplaudido no Festival de Cinema de Berlim na altura em que recebeu o prémio Urso de Ouro honorário AFP PHOTO / JOHANNES EISELE

Ken Loach passou 50 anos de carreira a ser mal-visto pelo que considera “a classe dominante britânica” - “chamaram-me um pior propagandista do que Leni Riefenstahl!”. Hoje, que finalmente a sua obra é reconhecida como uma das mais coerentes e consistentes do cinema inglês, o cineasta não tem ilusões de espécie nenhuma. “Não acredito que os meus filmes façam a diferença. Basicamente, apenas se juntam ao ruído circundante. Contribuem como podem para o discurso público, mas não passam de uma parte muito pequena...”

Loach, 77 anos, está em Berlim para aceitar o Urso de Ouro honorário pelo conjunto da sua carreira, iniciada em 1964 na televisão, e acompanhar uma retrospectiva de dez filmes. Entre eles Kes (1969), para muitos um dos dez melhores filmes britânicos de sempre; Terra e Liberdade (1995), um dos grandes filmes sobre a Guerra Civil de Espanha; O Meu Nome É Joe (1998), que revelou um actor de estadão chamado Peter Mullan; e À Procura de Eric (2009), onde Éric Cantona se interpreta a si próprio como “mentor espiritual” de um carteiro em dificuldades.

Em comum a todos estes filmes – e a outros que não foram mostrados como Brisa de Mudança (2006), Palma de Ouro em Cannes, sobre os “troubles” da Irlanda do Norte nos anos 1930 – está uma interligação inextricável entre o pessoal e o político, com especial atenção à vida quotidiana das classes trabalhadoras, na tradição britânica que se convencionou designar por “realismo social”. Tradição que, para Loach, vem da literatura vitoriana e sobretudo de Charles Dickens, cujos romances pugnavam pela mudança das condições de vida dos operários, e continuou com os “angry young men” de finais da década de 1950 (Alan Sillitoe, John Osborne ou Shelagh Delaney).

Loach começou carreira na televisão em 1964 - “sempre tivemos uma tradição de televisão de serviço público, entendido como dar espaço a esse tipo de escrita que remonta a Dickens e mais atrás”, diz nesta tarde de Berlim, numa pequena mesa-redonda com jornalistas, ao mesmo tempo que minimiza o seu papel de autor, preferindo ver-se como “transmissor” de argumentos. “A televisão deu-nos muito espaço para trazermos novos talentos e capturar o espírito dos jovens escritores de classe trabalhadora, mas eram eles que 'iam à frente' do movimento.”

O que diferenciou este estudante de Direito de Oxford de contemporâneos como Mike Leigh ou Stephen Frears foi sempre a dimensão abertamente engajada e de esquerda, que os seus filmes sempre manifestaram, resultado de uma educação cultural e política que Loach lamenta não existir hoje ao mesmo nível. “Quando começámos, abordávamos questões como os problemas de alojamento, o aborto, a pobreza, e os filmes procuravam uma solução para essas questões,” explica. “Mas hoje não existe uma cultura política que dê aos novos realizadores e escritores esse tipo de análise social. Tínhamos um estímulo intelectual que não creio que ainda exista. Fazíamos parte de estruturas que nos educavam – líamos O Capital, ou sobre Rosa Luxemburgo, e na semana a seguir tínhamos de debatê-los.”

Com isto, o cineasta não quer dizer que a consciência política não exista numa geração mais nova. “Existem muitos que têm estas preocupações, mas não têm o nosso contexto. Éramos um grupo de gente que tinha de produzir um filme por semana durante um ano, o que é uma posição fantástica. Hoje, pode-se levar três anos a montar um filme, e não existem outros realizadores ou argumentistas com quem se possa dialogar como nós fazíamos...”

Isto não quer dizer, contudo, que Loach seja um nostálgico do passado. “Tento não olhar para trás, seria muito deprimente...” sorri. “O próximo filme é sempre o mais interessante, e quando se olha para trás perguntamo-nos sempre como foi possível cometer tantos erros... Mas o mundo vai mudando, e os desenvolvimentos tornam os filmes mais urgentes, sobretudo quando sabemos que estamos a ficar mais velhos e não temos muito mais tempo de vida. Toda a questão ambiental é aterrorizante, sobretudo quando pensamos no tipo de mundo que vamos deixar aos nossos netos... As lutas internas na esquerda tomam uma perspectiva mais radical, a ascensão da extrema direita é assustadora... A verdade é que o círculo torna-se mais assustador a cada volta que dá, porque o que está em jogo é cada vez maior.”

É por isso que, pelo meio disto tudo, Loach continua a trabalhar ao ritmo de um filme por ano; depois da comédia A Parte dos Anjos (2012) e do documentário The Spirit of '45 (2013, a estrear entre nós em breve), termina actualmente a montagem de um novo filme, Jimmy's Hall, sobre a luta para manter aberto um salão de baile na Irlanda dos anos 1930. O facto de filmes mais recentes (como A Parte dos Anjos ou À Procura de Eric) serem mais “leves” em termos de abordagem não implica forçosamente que Loach se tenha apaziguado com a idade. “A sensação de urgência, o sentido de raiva sobre o que se está a passar no mundo puxam-me numa direcção mais agressiva, mas a minha experiência das pessoas sempre me disse que com a idade tornam-se mais benignas, mais bem-dispostas.”

Volta-se, então, ao Urso honorário que Loach recebe este ano, uma honraria que considera “muito generosa”, sobretudo face à conotação engajada que Berlim sempre teve e com a qual se identifica. “E obviamente importante pelo reconhecimento que nos dá. Claro que, se eu achasse que era um prémio demasiado 'do sistema', teria de o recusar...” Afinal, o cineasta recusou a Ordem do Império Britânico com que as autoridades britânicas o quiseram condecorar em 1977 - “não é um clube de que se queira fazer parte quando se vê alguns dos escroques que a receberam”, diria anos mais tarde.

Tudo se resume muito rapidamente num par de frases. “Não me parece que ser abraçado pelo sistema seja uma boa posição para se estar... Ainda não é o meu caso, e provavelmente nunca o será, o que não é mau. E não quero ser abraçado pelo sistema porque me parece que é bom estar-se de fora quando se cria arte para o público.”

 

 

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