A importância de ser Kennedy quando se critica o Japão

O Japão acolheu Caroline Kennedy como uma prova da sua própria importância. Mas a nova embaixadora americana em Tóquio criticou publicamente uma prática que muitos japoneses entendem fazer parte da sua tradição cultural: a pesca predatória de golfinhos.

Naquele que é o seu primeiro cargo governamental, Caroline Kennedy tornou-se embaixadora dos EUA no Japão em Novembro
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Naquele que é o seu primeiro cargo governamental, Caroline Kennedy tornou-se embaixadora dos EUA no Japão em Novembro Toru Hanai/REUTERS
Em Taiji, os golfinhos são mortos com pancadas na cabeça e no dorso, ao ponto de a água do mar ficar vermelha de sangue
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Em Taiji, os golfinhos são mortos com pancadas na cabeça e no dorso, ao ponto de a água do mar ficar vermelha de sangue AP

Em Novembro, quando Caroline Kennedy foi levada num coche até ao Palácio Imperial em Tóquio para apresentar as suas credenciais como embaixadora americana no Japão, milhares de japoneses curiosos concentraram-se nas ruas perto do palácio para acenar e tirar fotografias à filha da mais famosa família americana do século XX. Foi uma rara demonstração pública de afecto para uma diplomata estrangeira que, de resto, também mobilizou a cadeia televisiva japonesa NHK a cobrir o acontecimento em directo.

Mas não é todos os dias que Washington escolhe uma celebridade política para representar os Estados Unidos num país estrangeiro. Para o Japão, a nomeação da filha do presidente John F. Kennedy era prova de que os Estados Unidos estavam finalmente a dar ao país asiático o crédito que ele merece.

Isso foi há dois meses. Há uma semana, a habitualmente reservada Caroline Kennedy surpreendeu os seus anfitriões ao criticar publicamente uma prática que muitos japoneses entendem fazer parte da sua tradição cultural. “Preocupa-me profundamente a desumanidade da caça a golfinhos que consiste em encurralá-los e matá-los”, escreveu a embaixadora de 56 anos na sua conta oficial no Twitter, referindo-se a uma prática na costa oeste do Japão em que milhares de golfinhos são encurralados numa baía e mortos à paulada todos os anos. “O Governo dos Estados Unidos é contra a pesca predatória”, acrescentou Kennedy.

O comentário, de uma franqueza pouco diplomática, colocou uma questão delicada, que os responsáveis políticos japoneses prefeririam discutir em privado, no centro das atenções.

Desde há vários anos que activistas ambientais tentam pôr fim àquela prática no Japão, que é um dos maiores consumidores mundiais de carne de golfinho, servida crua em sashimi ou fervida em molho de soja. E desde há vários anos que os políticos e pescadores locais ignoram os protestos.

O porto de Taiji, uma localidade com 3200 habitantes na costa oeste do país, é a principal fonte de carne de golfinho, porque é aqui que mais animais são mortos numa temporada que vai de Setembro a Março. Os pescadores de Taiji seguem um método que consiste em percutir barras de metal para criar uma muralha sonora que “empurra” os golfinhos para uma baía, encurralando-os aí. Uma parte dos cetáceos é vendida para parques aquáticos; os outros são mortos com repetidas pancadas na cabeça e no dorso — ao ponto de a água do mar ficar vermelha de sangue.

Essa prática foi documentada e denunciada num documentário americano, The Cove – A Baía da Vergonha, que ganhou um Óscar em 2010. O filme foi muito criticado no Japão, onde foi acusado de ser “anti-japonês” e uma afronta à cultura tradicional.

Segundo o correspondente do New York Times em Tóquio, o comentário de Caroline Kennedy foi recebido com alguma irritação por parte de responsáveis políticos japoneses. O primeiro-ministro, Shinzo Abe, defendeu a caça ao golfinho numa entrevista à CNN, dizendo que é uma velha tradição local que é essencial para a subsistência económica de Taiji. “Esperemos que possam compreender isto”, acrescentou, respondendo a uma pergunta sobre a crítica da nova embaixadora americana no Japão. “Em todos os países e regiões existem práticas e formas de vida e de cultura que foram transmitidas pelos antepassados. Naturalmente, eu considero que isso deve ser respeitado.” A entrevista vai para o ar este domingo, mas a CNN antecipou um excerto com a reacção do primeiro-ministro japonês à controvérsia.

Outros políticos japoneses notaram que a matança de golfinhos não é diferente da de outros animais que fazem parte da cadeia alimentar e que podem ser mais apreciados pelo paladar ocidental. “Não está certo dizer que só a caça ao golfinho é desumana”, disse o governador de uma prefeitura onde a prática subsiste, citado pelo New York Times. “Nós vivemos à custa de vacas e porcos.”

Um porta-voz do Governo japonês, Yoshihide Suga, defendeu a prática, afirmando que ela não infringe nenhuma lei internacional. A Casa Branca, instada a reagir, reiterou a sua confiança na diplomata americana. “A embaixadora Kennedy está a fazer um excelente trabalho representando os Estados Unidos no Japão”, disse o porta-voz Patrick Ventrell na sexta-feira.

Caroline Kennedy foi apontada para o cargo depois de ter ajudado o Presidente Barack Obama na sua campanha de reeleição em 2012.

O Japão esperava que a mística Kennedy contribuísse para uma imagem mais atraente do país, mas a embaixadora americana parece estar a usar a sua notoriedade para dizer o tipo de coisas que outros no seu lugar provavelmente hesitariam em dizer.

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