Mercados, austeridade e capital

Tem sido noticiado que o mercado financeiro de Wall Street teve, em 2013, o seu melhor ano desde 1997. Para muitos é apenas um facto lamentável, uma consequência do domínio económico e político ao serviço do grande capital, dos interesses do capital financeiro, das grandes potências e dos grande bancos, um exemplo de desmedida especulação que tanto contraria os interesses das pessoas dos países mais pobres ou com maiores problemas, como a Grécia e Portugal, onde cada vez mais se acentuam as disparidades de rendimentos. Pode ser tudo isto, tenho as minhas dúvidas, mas este é o discurso político.

A realidade económica e social é bem diferente, estamos sim perante a evidência da importância do capital, que mudou o mundo no século XIX, tornou a mudar no século XX e dá todos os sinais que o mudará novamente neste século. O problema, ou não, é que é um fenómeno transfronteiriço, uma dimensão que ultrapassa largamente as minudências que o poder político pode ambicionar controlar. Resta-nos a todos uma adaptação ou aceitar um inevitável decréscimo de qualidade de vida.

Comecemos pelos factos, os investidores das empresas que constituem o índice S&P 500 ganharam em 2013, entre valorizações do mercado e dividendos, 4,062 biliões de dólares, são $4.062.000.000.000 para quem tiver dúvidas na convenção dos grandes números que estou a usar (3,75 biliões pelo aumento das cotações e 312 mil milhões em dividendos). As razões podem ser muitas mas as taxas de juro artificialmente baixas e os bons resultados das empresas terão sido as principais determinantes. O índice S&P 500 fechou o ano nos 1.848,36 pontos, uma subida de 30% para o valor mais alto de sempre, 32,4% se considerarmos os dividendos.

Não há forma do comportamento bolsista estar muito fora da realidade, pelo menos de uma forma consistente, pelo que se aceita que entre a confiança dos investidores e o comportamento da economia algo sustente a performance de 2013. De facto o índice de confiança dos consumidores americanos subiu novamente em Dezembro e os últimos relatórios sobre o mercado imobiliário mostram que o valor das casas em Outubro apresentava num grande conjunto de cidades uma valorização anual como já não se via há sete anos, o que é um bom presságio para 2014.

Sou no entanto dos que acredito que a actuação de certos Bancos Centrais, em especial da Reserva Federal Americana (Fed) e do Banco do Japão, com programas de avultadíssimas emissões de moeda e recompra de obrigações para estimular a economia, provocaram uma descida “artificial” das taxas de juro que catapultou o valor das acções. Há quem estime em 9,5 biliões de dólares o efeito no valor das empresas cotadas em todo o mundo provocado pelas políticas monetárias praticadas por estes senhores. Reparem que isto não significa necessariamente que as acções estejam sobrevalorizadas, tiveram mas foi uma valorização induzida pelo tal nível artificial das taxas de juro. Não admira por isto que os mercados tenham ficado nervosos no mês de maio, quando o presidente do FED, Ben S. Bernanke, comunicou que uma redução dos estímulos à economia estaria para breve, mas o que é certo é que o mercado subiu 12% desde aí até ao final do ano. Alguns medem o desfasamento do mercado em relação ao valor real dos activos pela evolução do rácio entre o preço e os resultados das empresas mas também por aqui não chegamos à conclusão que o mercado tenha subido demais. A estimativa deste rácio para as empresas que constituem o S&P 500 é de 20,32, um valor um pouco alto comparado com os últimos 3 anos mas perfeitamente normal se observarmos a série desde 1990.

Para 2014, de acordo com uma média de estimativas compilada pela agência Bloomberg, espera-se uma valorização mais moderada, em torno dos 5,5%, com um aumento de volatilidade, o que significa um menor consenso entre os investidores no mercado, o que é positivo e evitará valorizações exageradas.

Não tenho dúvidas da convicção da expressiva percentagem de portugueses que considera este tipo de análise de mercado algo de esotérico e apenas mais um exemplo das consequências de más políticas que, em especial desde o início do programa de ajuda financeira a Portugal, nos tem induzido a sucessivos programas de austeridade que prejudica a maioria da população e continua a enriquecer os capitalistas. Não admira por isso a existência de programas políticos alternativos, dos que defendem uma orientação para o desenvolvimento e crescimento económico, recusando a recessão, o desemprego massivo, o aumento das desigualdades e o empobrecimento da generalidade dos portugueses. Um discurso bonito, mas utópico e irrealista, de quem não aprende com a história.

De facto há muito que os nossos políticos só decidem, e nem sempre da melhor maneira, por males menores, em especial desde a entrada para o Euro e para a União Económica e Monetária.  Acredito que uma decisão diferente na altura nos levaria a um progressivo empobrecimento superior ao que experimentamos e é idealista a crença de alguns que a integração na comunidade europeia tenha acentuado a dependência e os défices estruturais, mas estou perfeitamente de acordo que a força crescente do Capital tem sido determinante para a evolução do nosso e dos outros países. Há muito de injusto na distribuição da riqueza em todo o mundo e é evidente e inquestionável que isso corresponde a uma parcela tendencionalmente menor do valor criado pelas empresas aos salários em contraposição ao que é distribuído às fontes de financiamento que sustentam cada negócio. O que é uma brincadeira de muito mau gosto é afirmar-se que este fenómeno tem origem em políticas de direita. Nada de mais errado, todos assistimos à mesma coisa em países com regimes políticos de todos os quadrantes. Uns estarão piores que outros mas o caminho das pedrinhas parece ser comum, em todo o mundo há uma tendência evidente para que a maior parte do capital se concentre numa pequena ou pequeníssima parte da população. Esqueçam os políticos, conseguimos distingui-los pela veemência das citações a expor esta situação mas é um problema que está a anos-luz de poder ser controlado pelos governantes.

A substituição do trabalho pelo capital é um assunto recorrente na ciência económica. Interessa-nos pouco ou nada a discussão técnica do grau de substituibilidade entre os diversos factores de produção, entre os quais o trabalho e o capital, interessa-nos sim que a evolução tecnológica, em particular o desenvolvimento da informática e dos processos de automação e de robotização, tem facilitado esta substituição. Este é o real fundamento para que cada vez mais se concentre mais capital nas mãos de poucos. Está longe de ser uma questão de politicas de esquerda ou de direita, o que acontece é que cada vez há mais funções que deixam de ter que ser praticadas por alguém e passam a poder ser asseguradas, ainda por cima de uma forma mais eficiente, por algum tipo de computador.

Não nos adianta ser contra ou a favor do progresso da informática ou seja do que for, ela é inevitável e cada vez mais rápida. Não admira que a sua influência nos níveis de emprego seja cada vez maior. Dois engenheiros da Universidade de Oxford, Carl Frey e Michael Osborne, publicaram um estudo em Setembro em que quantificam (deixou de ser apenas uma ideia) as ameaças de cada tipo de emprego com a evolução da informática. São 702 tipos de emprego que são estudados e para cada um é calculado a probabilidade de virem a ser substituídos por algum processo informático. São incríveis os resultados, em que os autores estimam que 47% dos empregos nos Estados Unidos estão em risco, podendo vir a ser substituídos por máquinas num horizonte de dez ou 20 anos. Há muitas correntes defendidas por diferentes economistas sobre as determinantes para a crescente taxa de desemprego nos diferentes países mas há um grupo crescente de académicos que aponta a evolução do equipamento controlado por computadores como a principal explicação para o desemprego. Estas conclusões já tinham sido defendidas num estudo efectuado pela McKinsey Global Institute (MGI), em 2011, em que se mostrava que 44% das empresas que tinham reduzido o seu pessoal desde a crise de 2008 o tinham feito pelo recurso à automação de processos.

Claro que é redutor afirmarmos que o mal do mundo vem da substituição do trabalho pelo capital mas parece-me claro que a história mostra uma evolução com riscos acrescidos para o futuro. Repare-se que no século XIX o avanço das tecnologias aumentou a necessidade de trabalho especializado com consequente aumento de rendimentos, o que foi positivo. No século XX já é mais difícil para muitos aceitar a bondade da evolução tecnológica já que criou um esvaziamento dos chamados empregos de rendimento médio e as previsões para este século também não são famosas neste aspecto, a polarização do mercado de trabalho tende a agravar-se com a informática a substituir uma enorme percentagem de empregos, especialmente aqueles com ordenados mais baixos em que são exigidas menores qualificações ou competências.  

Fazer de conta que tudo isto não existe é naturalmente viver fora do tempo. A substituição do trabalho pelo capital não é o resultado de políticas de esquerda ou de direita mas sim o efeito da evolução tecnológica e, sim, tem um efeito directo na distribuição da riqueza, concentrando-a cada vez mais num número cada vez mais pequeno de pessoas.

Claro que podemos imaginar um competente sistema fiscal que minimize os efeitos desta tendência mas é sem dúvida difícil de prever que funcione se for pensado e aplicado em cada um dos países individualmente. Uma coisa tenho como certo, não é certamente um problema com solução política evidente. Os políticos continuarão a expor este tipo de riscos e a dizer que bom bom era que fosse diferente, mas não é nem está na mão deles qualquer solução, este é um desafio sem solução à vista por terceiros. Os governantes têm responsabilidades acrescidas com esta tendência, sem dúvida que esperamos que tomem posições que minimizem os efeitos desta mudança, em especial no apoio à classe mais desprotegida que será cada vez maior, mas também têm que incentivar os que se conseguirem posicionar devidamente. O Estado não deve, nem pode, substituir-se à incompetência dos empresários, mas tem que estimular os outros, nomeadamente com um quadro jurídico adequado.

Bom é tomarmos consciência do actual contexto e adaptarmo-nos em conformidade. Se tivermos a habilidade e competência necessária seremos um dos privilegiados que mantém opções e qualidade de vida, caso contrário ficaremos sujeitos a fazer parte do grande grupo dos indiferenciados, que cada vez terá mais dificuldade em sobreviver. Ouvimos muitos dizerem que uma formação adequada deixou de ser garantia de coisa nenhuma. É verdade, pode não ser suficiente mas cada vez é mais necessária.

E volto aos mercados. Os mercados, juntamente com certa actividade bancária e outras sociedades financeiras, assim como estruturas mais ou menos cooperativas, como os fundos de investimento, apoiam de forma directa e indirecta o investimento produtivo. Financiam e promovem projectos que geram valor e penalizam os que os destroem. O seu papel é insubstituível sem perdas colossais em eficiência. Nos mercados partilha-se risco, risco inerente a qualquer investimento. A transferência de valor entre o trabalho e o capital é uma realidade que tende a agravar-se mas também existe o contrário, o capital também promove os que criam valor.

No final nada mudará, o mercado encontrará meios de canalizar o capital dos aforradores para o investimento, independentemente do sistema político. É assim há séculos e assim continuará. O capital só serve para gastar ou investir, duas coisas que precisaremos sempre e bom que continuemos com a liberdade de decidir como.

Consultor em projectos de investimento e seguros de crédito

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