Caso das investigações a cidadãos angolanos "podia ter sido gerido de outra forma"

José Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical de Juízes Portugueses, em entrevista.

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Mouraz Lopes diz esperar que a "proposta seja rapidamente" colocada em discussão pública e que o processo legislativo seja célere Rui Gaudêncio

Para o magistrado, de 52 anos, a justiça está num impasse e o Presidente da República devia intervir enviando um sinal de que está atento e recorrendo à sua magistratura de influência. José Mouraz Lopes diz que os juízes preferiram percorrer outros caminhos em vez de avançarem para a greve. Sobre o anteprojecto do mapa judiciário, diz que seria desejável um prazo de um ano após a nomeação dos juízes-presidentes para este ser implementado. Faz um balanço positivo da actuação da ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, e não a responsabiliza pelos cortes orçamentais. Sobre o impacto da crise no quotidiano das salas dos tribunais, nota um aumento dos pequenos furtos relacionados com a toxicodependência e lamenta que estejam em risco as políticas de prevenção e acompanhamento da toxicodependência pelas quais Portugal já foi considerado um exemplo.

Os procuradores estão em greve esta segunda-feira em protesto contra a degradação do Estado de direito. Subscreve os motivos da greve?
É mais um sintoma da gravidade da situação que está a atingir o sistema de justiça. A ASJP percebe os motivos mas temos outra estratégia. É uma greve que deve levar o poder político a encarar de outra forma o que se está a passar no sector.

Os juízes acabaram por não avançar para a greve. Foi um recuo?
Não houve recuo nenhum. Nem podia haver. Convocámos a maior assembleia geral [no sábado, 9 de Novembro] que algum dia ocorreu em Portugal, que reuniu quase 10% dos juízes portugueses. Tivemos desde os juízes da primeira instância aos do Supremo a dizerem “basta”. Mas não paralisamos, temos é de demonstrar a nossa razão.

Mas antes desta assembleia geral chegou a falar em greve.
A assembleia deu-nos o mandato para, se for necessário, desencadearmos o procedimento legal para tal, convocando nova assembleia geral extraordinária.

Os juízes estão divididos sobre essa matéria?
De todo. Houve uma grande unanimidade na forma de actuação em relação a momento. Estamos saturados, estamos no limite, o poder político tem que atentar nos tribunais como um órgão de soberania, com um estatuto digno no exercício de funções, com condições materiais dignas. Há outra questão que tem a ver com as pressões que estão a ser feitas sobre os tribunais, concretamente o Tribunal Constitucional (TC).

O direito dos juízes à greve é uma matéria controversa...
No caso português não é. Temos um estatuto híbrido de titulares de órgãos de soberania mas que nos faz depender economicamente do poder legislativo e executivo, e que nos permite usar os mecanismos-limite da lei sindical. Julgo que a greve no caso dos juízes deve ser utilizada apenas em última instância. Não deve haver uma banalização das paralisações. Neste momento entendemos que não iríamos para a greve porque havia um caminho a percorrer. E tirando a questão das pressões, que infelizmente continuam a ocorrer, há pequenas janelas que se têm aberto.

Que janelas?
A redacção da lei do Orçamento do Estado (OE) fazia parecer que os cortes nos vencimentos dos juízes eram definitivos. A proposta de lei apresentada pelos grupos parlamentares do PSD e do CDS foi alterada no sentido de que os cortes – dos quais que também discordamos, por entendermos que são violadores da Constituição – sejam transitórios. Isso ficou claro só depois da nossa intervenção e existe agora também em relação ao resto dos servidores públicos. Outro passo que gostaríamos que tivesse sido dado mas não foi relacionava-se com o Orçamento contemplar a alteração estatutária remuneratória dos juízes no próximo ano. Estamos à espera de algum sinal sobre isso.

Esta parte do Orçamento não está, então, ferida de inconstitucionalidade?
Sobre a questão da transitoriedade dos cortes a proposta do Governo era mais do que duvidosa. Com esta alteração julgo que o problema fica resolvido nesta parte da questão. Mas não fica no que respeita à questão da proporcionalidade: voltou-se a alterar o limite dos cortes que o TC tinha referido em 2011 e em 2012, entre três e dez por cento. Agora, segundo a proposta de Orçamento, os cortes passam a ser entre três e doze por cento e deixam de ser progressivos. Aqui entendemos haver violação do acórdão do Constitucional.

Existe a percepção na opinião pública de que os juízes estão a tentar obter um tratamento de excepção com o argumento de que constituem um órgão de soberania.
Não queremos um tratamento de excepção em relação aos outros portugueses. O nosso estatuto remuneratório tem é de ser tratado de acordo com o exercício de funções único que temos no sistema político português. Somos os únicos servidores públicos com exclusividade absoluta. Nas constituições americana, polaca e alemã ou brasileira, por exemplo, há normas constitucionais que blindam a dimensão remuneratória dos juízes, não permitindo que se baixe o seu salário. Não é um estatuto acima dos outros, é um estatuto blindado.

Mas quem determinaria esse estatuto?
A Assembleia da República. De acordo com a situação de um país que não é rico, claro, mas não permita isto de andarmos todos os anos de mão estendida. Quando nos momentos de crise como este vemos entidades como as reguladoras aumentarem os vencimentos dos seus membros – o que é perfeitamente legítimo – esquecem-se que se trata de entidades cujas decisões podem ser revogadas pelos tribunais. Por que se faz isto num momento em que não há dinheiro para todos? Daí a nossa perplexidade. Onde há um regime de excepção é no Banco de Portugal – que compreendemos em função dos argumentos invocados, os do sistema europeu financeiro. Agora, caros amigos, os juízes portugueses são também juízes europeus. Aplicam o direito europeu.

Chegou a fazer depender a independência dos juízes do seu estatuto remuneratório
Isso foi uma interpretação daquilo que disse na Assembleia da República [há um ano]. Há uma dimensão na independência que é a financeira. Devia ser o Conselho Superior da Magistratura (CSM) a gerir o orçamento da justiça, dos tribunais e o próprio pagamento do ordenado aos juízes. Devia ser ele a “negociar” o orçamento do sistema de justiça com o Parlamento – e não o ministério. É assim na maioria dos países.

Disse que a ministra da Justiça compreende a gravidade da situação, mas o Governo não.
Ainda esta semana tive uma reunião com ela e mais uma  vez expusemos-lhe a situação. Há aqui um problema institucional que não é de mais um euro ou menos um euro. Os outros poderes têm de tratar a justiça como um poder soberano. Não podemos continuar neste caminho. A ministra percebeu isto. Disse-me que isto é um problema do Governo que a ultrapassa.

Não responsabiliza a ministra pelos cortes?
Directamente, claro que não. Todos sabemos que isto decorre do Ministério das Finanças e do primeiro-ministro. Não há disponibilidade orçamental, disse-nos a ministra. Mas tem de haver, para tratar a justiça com a dignidade que ela merece. Quem visitar os tribunais a primeira coisa que vê é que eles são austeros: não há luxos nenhuns. Os juízes têm vidas austeras.

O que é para si um salário razoável?
Sabe o que é que não é? Um juiz-conselheiro com 40 anos de serviço estar a ganhar 3400 ou 3500 euros líquidos. Ou a remuneração dos 60 juízes do Supremo Tribunal de Justiça ter sido, em 2012, inferior à do presidente de uma empresa do PSI-20. Isto não é razoável em lugar nenhum do mundo.

As empresas vivem do mercado...
Um juiz do Supremo Tribunal espanhol ganha mais do dobro do seu congénere português, já para não falar de outros países. Um juiz de primeira instância não deve ganhar menos de 2500 euros. Há mínimos que têm de ser garantidos. Isto não é demagogia. Nós compreendemos a situação de uma pessoa que ganha 500 ou 600 euros por mês, ou que nem tem emprego. Todos os dias estão à nossa frente nos tribunais.

Falava há pouco da falta de condições dos tribunais. A ASJP tem feito um levantamento do problema. A que conclusões chegou?
Há situações caricatas, situações lamentáveis. O Tribunal do Trabalho de Barcelos funciona numa loja num centro comercial. Os sinistrados são vistos pelos médicos num pequeno gabinete sem condições de salubridade. No Tribunal de Vila Franca de Xira chove lá dentro. Tirando Lisboa, não há praticamente gabinetes de trabalho para os desembargadores dos tribunais da Relação. Também temos boas instalações, como é óbvio. É esta quase indignidade que não pode continuar assim. Como é que vamos reformular a geografia judiciária do país com este cenário?

Elogiou a ministra Paula Teixeira da Cruz por ela ter posto fim a um clima de crispação que havia com o Governo anterior. Mas o sector está outra vez em pé de guerra, com uma sucessão permanente de greves ou ameaças de greve.
A crispação que existia era um completo antagonismo entre o sistema judicial e o político, com o afrontamento do anterior primeiro-ministro à justiça, e essa não voltou. Basta recordar a medida que ele tomou em relação às férias judiciais, como se fosse um privilégio dos juízes. Esta ministra defende e tem cumprido a independência dos tribunais e a autonomia do Ministério Público. E não tem falta de respeito pela instituição dos tribunais. O que está em causa neste momento é que a questão orçamental pode colidir com esses princípios.

Os seus antecessores chegaram a apresentar uma queixa no Ministério Público por causa das despesas dos gabinetes do Governo socialista.
O Governo recusou-se a entregar-nos esses documentos, intentou-se uma acção, o tribunal deu-nos razão e foi tudo remetido para o MP, onde os documentos ainda estão.

Seria capaz de fazer o mesmo em relação ao executivo de Passos Coelho?
É evidente. Mas neste momento esse tipo de informações são conhecidas, portanto não é necessário.

Quando esteve na Polícia Judiciária desempenhou funções de chefia ligadas ao crime económico. Os cortes põem a investigação criminal em causa?
Sei que há alguns défices de meios nas perícias, porque também sentimos isso em tribunal.

A ministra tem posto a tónica no combate à criminalidade económico-financeira. Isto é real?
Como observador externo vejo muito boas intenções, mas não sei se os resultados estão à vista. A criminalização do enriquecimento ilícito não foi por diante – e eu próprio também tenho algumas dúvidas em relação a essa matéria. Agora insisto nisto: trata-se não de legislar – as leis que há são suficientes; trata-se de investir e modificar o sistema de gestão da investigação. É preciso dar meios à investigação e julgo que não existem em quantidade suficiente. É preciso criar equipas especializadas e não andarmos na penúria. É preciso papel, lápis, toner... Quando temos sistemas informáticos débeis...

E do lado dos criminosos a sofisticação é grande.
Desse lado por regra temos pessoas capazes de contratar os melhores peritos e toda a artilharia que lhes permite combater o sistema processual. Há um grande desequilíbrio de meios entre os investigadores e os criminosos.

Tem apelado repetidamente à intervenção do Presidente da República. Desilude-o a actuação do primeiro magistrado da nação nesta área?
O sistema de justiça tem uma particularidade em relação aos outros poderes: é independente, mas em termos de governance, depende dos poderes executivo, legislativo e presidencial. Neste sistema, o Presidente tem que ter uma intervenção, no sentido de estar atento ao que se passa e tem que intervir, no exercício da sua magistratura de influência, junto do Governo e da AR. A justiça não é um departamento do Ministério da Justiça.

Mas o Presidente tem tido a intervenção que lhe seria exigível?
Eu julgo que há a necessidade de o Presidente intervir mais.

E o que é que ele deveria estar a dizer?
Pode usar a sua magistratura de influência, como faz em outras áreas. Gostaria de ver o Presidente a olhar para Justiça tendo em consideração que a Justiça é um poder fraco: não tem armas, nem dinheiro. Era importante que desse um sinal à Justiça de que está a acompanhar a situação.

O Conselho Superior de Magistratura pede que o novo mapa judiciário seja implementado de uma forma faseada. Há o risco de uma quebra de produtividade durante essa fase de implementação?
Mesmo que as nossas críticas – que são muito semelhantes às do CSM – sejam aceites no anteprojecto do mapa, a implementação deste tem que ser feita com muito cuidado e com todas as peças já no terreno. Estamos a falar na mudança de 230 para 23 comarcas. Isto tem um impacto terrível no dia-a-dia dos tribunais, como já aconteceu nas comarcas-piloto, onde as mudanças demoraram um ano ou mais a ser implementadas. O anteprojecto tem um mecanismo que nós propusemos, e que foi aceite pelo ministério, que é o de que haveria um prazo de seis meses para implementação do mapa após a nomeação dos juízes-presidentes. O que falta é saber se há condições materiais e de funcionários para que isto seja feito nesses seis meses.

Não há funcionários suficientes?
Não, e a ministra reconheceu-o. E tudo isto tem um impacto financeiro grande. Por exemplo, o CSM precisa de um programa informático para gerir os juízes que custa 200 mil euros. Até à semana passada, ainda não havia disponibilidade financeira para que esse programa fosse adquirido no próximo ano. E é preciso assegurar a deslocação dos juízes no interior das comarcas, são precisas instalações suficientes para os juízes. Tudo isto demora tempo e exige planeamento e meios. Isto tem que ser feito com cabeça, tronco e membros, ou então é um caos. Há um caso paradigmático que criticamos que é o Tribunal de Família e Menores de Leiria, que é uma capital de distrito, passa para secções em Pombal e Caldas da Rainha. Isto não faz sentido.

Não é por causa do número de processos?
Não é por causa disso. Terá mais a ver com as instalações que faltam. As instalações é que têm que se adequar à realidade e não o contrário. Espero que haja meio ano ou um ano para implementar isto.

Meio ano já está previsto…
Pois está, mas é capaz de não ser suficiente. Isto é o país todo que vai ser movimentado de um dia para o outro.

E há a questão das divergências quanto aos quadros de juízes. Já percebeu o que se passa?
O quadro de juízes que era proposto [no anteprojecto do mapa judicial] não corresponde à situação actual do número de juízes.

E qual é a diferença?
É proposto um quadro de juízes de 1088 e estão 1359 em efectividade de funções.

Mas a ministra disse que ia aumentar o quadro em 15%?
Sim, mas em relação ao quadro de 1999. Mas entre 1999 e 2013 há mais 350 novos juízes.

Onde é que vão parar? Já perguntou à ministra?
Já e a senhora ministra disse-nos que estava previsto que estes quadros ficassem na chamada bolsa dos juízes, a ser gerida pelo CSM. A bolsa existe há meia dúzia de anos e é fundamental para resolver problemas conjunturais de faltas de juízes por razões conjunturais, como pendências, baixas, licenças de maternidade. Neste momento há 96 juízes de bolsa em todo o país. Passa a haver quase 300, o que não faz sentido, porque são necessários os que existem, á volta de cem. Os outros 200 têm que estar num quadro porque esse quadro é necessário. E nesta parte nem sequer há um problema financeiro.

Não há um risco de precariedade nos juízes.
Claro que não. O que achamos é que em relação a algumas áreas há défice de juízes. Na jurisdição comum, que engloba o cível, o crime, o tribunal de trabalho, o tribunal de comércio, os juízes que existem nos quadros são neste momento, alterando-se algumas localizações, suficientes para aguentar o sistema. Nós sabemos que há tribunais que vão desaparecer e em termos racionais isso faz sentido…

E em termos de direito das populações ao acesso universal à justiça?
Isso é mais complicado. Nós temos a noção que hoje há tribunais onde um juiz só vai lá de vez em quando. Mas o direito ao acesso à Justiça está em causa. E há casos de tribunais que são extintos sem qualquer razão estatística, como Alcácer do Sal ou Alcanena.

Mas a racionalização faz sentido?
Admito que a racionalização faz sentido, mas tem que ser conjugada com o direito ao acesso à justiça.

Relativamente ao anteprojecto do mapa judiciário, há um número de tribunais a extinguir que seja aceitável para a ASJP?
O que dizemos é que há alguns tribunais que poderão vir a ser extintos que não devem ser extintos. E há outros que em termos estatísticos podem ser extintos, o que põe um problema quanto ao direito ao acesso á justiça. O direito das populações pode ser eventualmente utilizado de outras formas e o Governo poderá resolvê-lo de outras formas. Mas isso é um problema de opção política. Tal como é um problema de opção política a divisão territorial das comarcas, que nós sempre contestámos

As secções de proximidade fazem sentido?
No desenho que está feito, faria mais sentido que fossem juízos. O trabalho que vão ter é equivalente ao de um tribunal e os juízes terão que lá ir despachar processos. O melhor era manter tribunais mas mais pequenos. Mas insisto, isso é um problema de opção política.

As secções são tribunais? É um problema de designação?
Em função do conteúdo e das funções que lhes são atribuídas, provavelmente são.

A reforma do Estado recentemente apresentada pelo Governo refere-se a uma nova e enigmática arquitectura do sistema judiciário. Que leitura faz desse capítulo da proposta do Governo?
Não gosto muito de discutir com fantasmas. É uma frase que pode dizer tudo e mais alguma coisa. Já foi dito que tem a ver com a extinção do TC.

E isso é admissível para si?
É um erro crasso. Há pessoas que acham que o TC devia ser uma secção do Supremo Tribunal de Justiça. Mas julgo que estar a pôr em causa o papel do TC não faz sentido.

 Mas podia ser uma secção do Supremo? O sistema não faria fragilizado se isso acontecesse?
Claro que não ficaria fragilizado se isso acontecesse. Mas não podemos andar a mexer nos sistemas constitucionais ao sabor das legislaturas. O TC está a fazer um caminho. Temos mais fazer do que pensar tocar nessas questões da arquitectura. Também é um erro mexer na independência do MP. Se pode haver um ou dois CSM, isso até pode ser uma discussão que pode ter sentido no futuro.

A ministra explicou que a reforma refere-se à consagração constitucional da independência das magistraturas. Mas ela não está constitucionalmente garantida?
Está. A senhora ministra fala numa coisa que é muito cara que á densificação constitucional das magistraturas. Eu gostaria que o estatuto dos juízes só pudesse ser alterado por dois terços da AR, para evitar tentativas de manipulação como aconteceu em 2008. Gostaria que houvesse uma blindagem constitucional das questões remuneratórias e financeiras dos juízes. E gostaria que o presidente do STJ fosse membro do Conselho de Estado, para valorizar politicamente a quarta figura do Estado. Se for isso, compro já. Mas não sei se é.

A ministra da Justiça tem apresentado obra feita e diz já ter feito a sua parte das reformas pedidas pela troika, embora muitas coisas estejam ainda por implementar. Que balanço faz do que tem sido até aqui o mandato de Paula Teixeira da Cruz?
Julgo que a ministra tem cumprido praticamente tudo aquilo a que se propôs em termos legislativos, excepto o mapa judiciário, que ainda está em construção. A reforma do processo civil é uma muito importante, embora a tenhamos criticado em termos pontuais, nomeadamente quanto à sua aplicação, que devia ter acontecido após a implementação do mapa judiciário. Mas aí também temos que reconhecer que não tem havido problemas. É uma boa reforma e sempre o disse. Em relação à reforma penal, concordámos genericamente, excepto quanto ao processo sumário, que é inconstitucional, como o TC veio dizer agora. Mais dia menos dia vai ter que haver uma nova reforma quanto a essa matéria. Quanto à questão da execução [de dívidas], que é o cancro do sistema de justiça civil, que não há meio de ser resolvido, deram-se alguns passos com esta reforma e houve uma limpeza dos processos, o que já não é mau. Esta reforma poderá agilizar algumas coisas, nomeadamente dando aos solicitadores de execução poderes como o de penhorar as contas bancárias dos devedores. O balanço nessa parte é positivo mas há muita coisa que ainda está no papel.

E a justiça melhorou para os cidadãos?
Se olharmos para a estatística, a Justiça melhorou em algumas coisas e noutras piorou. Na justiça administrativa e fiscal os atrasos continuam a ser insustentáveis, porque não se investe na retirada de um conjunto de processos que não deviam lá estar. Pelo contrário, continuam a ser enviados para os tribunais processos relacionados com portagens ou multas da EMEL, por exemplo. Aqui não melhorou nada para o cidadão. Mas melhorou na justiça criminal. Não estou a falar na investigação. Hoje em dia, a resposta dos tribunais criminais é das mais rápidas da Europa. Os números estão lá.

E por que é que não se consegue exportar essa rapidez para outros sectores?
É preciso olhar para os investimentos que foram feitos na justiça penal nos últimos anos e não só neste Governo. Começou a limpar-se um pouco o complicado do processo penal e a evitar as delongas que existiam. O sistema territorial passou a ser melhor. Aqui as coisas evoluíram rapidamente. Aliás há uma consequência disso: nós neste momento temos 14 mil e tal pessoas presas.

Os juízes ainda aplicam pouco as penas alternativas como o trabalho comunitário?
Têm aplicado mais, mas deveriam aplicar ainda mais. No entanto, não há penas alternativas suficientes. Por exemplo, estamos com um défice nas liberdades condicionais, há poucos apoios no exterior às pessoas que têm direito à liberdade condicional e portanto essas pessoas podiam não estar presas.

O Código de Processo Civil poderá melhorar a celeridade do sistema?
Julgo que tem virtualidades para agilizar o processo civil.

Como é que a crise se reflecte na experiência quotidiana do juiz no tribunal?
Desde logo há áreas onde o aumento processual é significativo, como o laboral e o comércio, num primeiro momento, com as insolvências.

E a nível dos casos humanos?
Por exemplo, a ausência de suportes institucionais laterais para apoiar pessoas em dificuldade, seja nas prisões, nos trabalhos a favor da comunidade, no apoio a menores e famílias em perigo. Há menos respostas institucionais, porque há menos dinheiro. O caso dos toxicodependentes reflecte-se nos tribunais. Nós tivemos durante muitos anos um modelo de sucesso que apostou na prevenção e na não aplicação de medidas de prisão a crimes de pequeno tráfico ou de consumo. Este modelo funcionou bem com apoios institucionais, que são caros, mas com os quais o Estado vai ganhar. Este problema está a chegar aos tribunais com os furtos relacionados com a toxicodependência, que estão a aumentar.

Como vê a forma como foi gerido o caso das investigações a altos dirigentes angolanos? A ASJP pediu um esclarecimento quanto a eventuais interferências.
Questionámos as declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, por haver uma suspeita de violação do princípio da separação de poderes.

Esse esclarecimento foi feito?
Os dados que vieram a público são suficientemente esclarecedores para perceber que houve ali coisas que não foram muito claras.

Mas como ficou a imagem da justiça?   
Do ponto de vista político, não vou comentar. Do ponto de vista do sistema de justiça isto podia ter sido gerido de outra forma, de modo a não pôr em causa a imagem de total independência e imparcialidade da justiça.

O processo de Angola pôs em causa essa imagem?
Não queria dizer mais do que isto.

Depois das declarações do ministro, dois processos foram arquivados….
As perplexidades do cidadão são comungadas por mim.

Que balanço faz do primeiro ano de mandato da procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal?
Houve uma viragem importante em relação à imagem do MP. O primeiro ano da senhora procuradora evidenciou-se sobretudo pelo silêncio e pela discrição em relação à actuação do seu antecessor. Julgo que isso foi positivo. Mas o MP precisa de mais. Precisa de se organizar fortemente e tem que ser mais eficaz. Tem que se adaptar às exigências que uma sociedade moderna quer dele. E, nesse aspecto, precisa de mudar a sua estrutura.

Mas em que sentido?
O modelo de organização da investigação criminal foi criado para um sistema de criminalização de há 25 anos atrás. E estas coisas têm que se adaptar aos tempos. Aí julgo que é preciso dar uma grande volta ao MP.

O segredo de justiça tem sido um dos pontos aos quais a procuradora tem dado mais atenção, como se viu por este inquérito recente. É a batalha certa?
A violação do segredo de justiça é uma questão grave pelas repercussões que tem. E acho a senhora procuradora fez muito bem em enfrentar a situação e tem toda a razão. Os portugueses continuam a não perceber o que continua a acontecer que são violações cirúrgicas de processos complexos. Nos outros acontecem todos os dias nos jornais, quando é o Zé da Esquina a estar em causa, o que também é grave.

Mas disse que tinha dúvidas quanto à legalidade do inquérito.
É uma questão pontual. No inquérito há duas questões que são inadmissíveis. Pus em causa a legalidade e a questão ética que está ali subjacente. A senhora procuradora veio esclarecer que os objectivos são estatísticos. Se é assim, concordo plenamente, mas essas duas questões têm que ser retiradas. Não faz sentido eu ou qualquer pessoa estar agora a identificar um processo quando os operadores judiciários, os juízes, os procuradores, os polícias têm o dever de denunciar um crime quando têm conhecimento dele. Se não o fizeram e o fizessem agora, estavam a incriminar-se. Era quase um incentivo à auto-incriminação.

Os juízes são uma classe conservadora?
Os juízes são como os portugueses, em geral. Reflectem o país que tem.

Fez declarações em que disse não ver grandes problemas em que um juiz pertencesse a organizações secretas como a maçonaria ou a Opus Dei, desde que o comunicassem.
Eu não disse que não havia problemas. Disse e mantenho que os juízes que pertencessem a essas entidades devem comunicá-lo.

Mas não estão sujeitos a uma fidelidade que pode pôr em causa as decisões que tomam?
Por isso acho que devem comunicar essas ligações ao CSM, de forma a preservar o princípio da imparcialidade que lhes é exigido.

Mas não seria mais simples proibir que juízes tivessem essas ligações?
Sou avesso a proibições da actividade dos juízes como cidadãos. Há restrições aos direitos de cidadania que têm que continuar a ser impostas aos juízes, como a actividade política. Há actividades que não põem problemas, como a participação em associações de solidariedade, por exemplo. Há outras quanto às quais tenho dúvidas e nos quais devia haver esse registo de interesses.

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