A luta pelo Camões não acaba ao cair do pano

Professores, pais e alunos, antigos e actuais, da secundária de Lisboa, juntam-se na terça-feira para uma gala de solidariedade, às 21h30 no Coliseu dos Recreios. Deixam uma promessa: não vão deixar cair o Camões.

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Telas presas às janelas substituem as persianas estragadas Tiago Machado
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Chove em algumas salas de aulas e as paredes acusam anos de infiltrações Tiago Machado
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Escadas dão acesso ao segundo andar: onde antes vivia o reitor com a família funcionam agora salas de estudo Tiago Machado
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Janelas de madeira apodrecida deixam entrar o frio nas salas de aula Tiago Machado
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Ginásio foi palco de vários momentos marcantes do Camões mas agora é a zona mais vulnerável do liceu Tiago Machado
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Os azulejos soltos nas paredes atestam a degradação do imóvel Tiago Machado
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Campo de jogos está fechado há oito anos porque um dos muros cedeu Tiago Machado

O sismógrafo antigo oferecido pelos alemães nas décadas de 1930 ou 1940, quando Hitler estava no poder, ao então “Lyceu” de Camões está impecavelmente arrumado no armário na velha sala de física. Hoje é quase uma peça de museu mas se houvesse um terramoto como o que abalou Lisboa em 1755 talvez o pequeno aparelho ainda funcionasse. O edifício é que dificilmente ficaria de pé.

Em 104 anos, aquele que foi o primeiro liceu – agora escola secundária – a ter um edifício construído de raiz em Lisboa nunca teve obras de fundo e as marcas do tempo estão a pôr em risco a segurança dos que o frequentam. Enquanto esperam por uma intervenção que ninguém sabe quando (e se) irá avançar, professores, pais e alunos, actuais e antigos, recusam baixar os braços.

Na terça-feira às 21h30, o Coliseu dos Recreios em Lisboa será palco de uma gala cujo objectivo é angariar pelo menos 20 mil euros – tanto quanto vai custar esta iniciativa patrocinada por privados – para a reparação urgente das janelas e do escudo que está sobre a porta principal, cheio de fissuras, em risco de queda.

Entre concertos, peças de teatro, dança e testemunhos de actuais e antigos alunos – entre eles nomes como Durão Barroso, Mariano Gago, Nicolau Breyner, Luís Miguel Cintra ou Júlio Isidro, entre muitos outros – a organização quer mostrar que o edifício projectado por Ventura Terra, classificado em Dezembro como monumento de interesse público, é feito de mais do que paredes e tectos a cair.

Obras suspensas

A requalificação da escola secundária, a cargo da Parque Escolar, chegou a ter início marcado para Agosto de 2011 mas foi suspensa, sem data para avançar. Para executar o projecto da autoria do arquitecto Falcão de Campos são precisos 18 milhões de euros. Um valor que “não está previsto” no orçamento da empresa pública para 2014, adianta ao PÚBLICO o seu gabinete de comunicação, não revelando quando é que a intervenção poderá avançar.

O relatório do Orçamento do Estado para 2014 prevê um acréscimo nas transferências para a Parque Escolar em 105,7 milhões de euros mas não refere o valor global do orçamento. Em Outubro, “fonte oficial” da empresa revelava ao Diário Económico que em 2014 seriam investidos 330 milhões em 22 escolas. Mas a secundária de Camões, onde estudam 1700 alunos do 10.º ao 12.º ano, incluindo ensino nocturno e cursos profissionais, não é uma delas.

Nada de novo para o director da escola, João Jaime Pires. Há algum tempo que este professor de Matemática, apenas um dos muitos rostos da luta pela requalificação do liceu, percebeu que o projecto “morreu na praia”. “Na primeira reunião com o ministro Nuno Crato percebemos que em 2012 e em 2013 não haveria condições. Mas hoje não percebemos. Não é um problema de dinheiro. Há um critério escondido do qual ninguém fala”, lamenta.

João Jaime Pires considera que o liceu foi “usado” pela Parque Escolar, em particular pelo antigo presidente Sintra Nunes (ex-aluno do Camões), para “prolongar” a actividade da empresa. “Só faz sentido haver Parque Escolar enquanto houver edifícios de grandiosidade como o Camões ou a escola Alexandre Herculano, no Porto, para requalificar”, sustenta.

Quem espera, desespera. No ano passado, a associação de pais conseguiu dinheiro para pintar as paredes das salas. Comprou telas para tapar as janelas sem persiana porque os alunos não viam o quadro, com a luz do sol. “No Inverno os miúdos estão de casaco vestido porque as janelas, apodrecidas, deixam passar o frio”, descreve a presidente da associação, Paula Soares. Inscreveu as duas filhas na secundária, que este ano ficou em 98.º no ranking do PÚBLICO entre as escolas com mais de 50 provas realizadas e em 7.º lugar entre as escolas de Lisboa.

Podia tê-las matriculado noutra escola ou até num colégio privado. Mas “esta escola é única”, argumenta. Porquê? Desfia uma lista de razões: por ser das poucas escolas apenas com ensino secundário em Lisboa e Paula Soares é contra os agrupamentos, porque os alunos têm “espaços de reflexão, ciclos de cinema, projectos de solidariedade” e “saem do liceu a saber pensar”. Além disso, o corpo docente é estável e o edifício fica situado numa zona bem servida de transportes públicos. “É tranquilizador”, remata.

“O que é realmente importante é a estrutura do edifício, sem corredores, com as salas de aula viradas para o pátio, para um espaço de liberdade”, resume por seu turno João Jaime Pires. E sublinha que, apesar das más condições do edifício, todos os anos há uma enchente de alunos a querer entrar na escola.

Proibido correr

Os anos pesam no Camões e isso vê-se por todo o lado, apesar dos remendos que se vão fazendo aqui e ali. Vê-se nas paredes rachadas, nos tectos forrados de cortiça a desfazer-se, nas persianas emperradas, no emblemático ginásio – simultaneamente palco de festas, projecções de cinema e discursos (como o de Salazar, a 11 de Março de 1938) e sala de ginástica – cheio de infiltrações.

Era no ginásio que antigamente se faziam os exames de admissão ao liceu. O apresentador Júlio Isidro, que entrou para o Camões aos dez anos em 1955, recorda bem o seu. Teve “zero erros” no ditado. Era o aluno número 27 de uma turma de 42. Da gaveta das memórias vai tirando as que o marcaram mais, numa visita à escola com o PÚBLICO, acompanhado por Ricardo Silva, aluno do 12.º, um dos fundadores do Movimento Camoniano (grupo de alunos que dinamiza a escola, a par da associação de estudantes) e aspirante a militar da Força Aérea.

Além da obrigatoriedade de usar gravata, era a proibição de correr no pátio que mais chateava o menino Júlio. “Às vezes dava dois passos e olhava com medo para as galerias para ver se estava o reitor, com a sua gabardina cinzenta e o chaveiro a tilintar pendurado no dedo.”

Proibido correr e jogar à bola, para “evitar prejuízos de várias espécies”, justificava o reitor Sérvulo Correia, personalidade controversa e exigente, numa nota interna de 27 de Janeiro de 1960, na qual reprovava o comportamento do aluno António Dias Ferreira (que viria a ser presidente do Sporting). Na tarde anterior, tinha levado para a escola um balão, que utilizou como bola. “E, como se isso não bastasse, teve para com o empregado [então designado “pessoal menor”] que lhe pediu o balão uma atitude pouco correcta e desrespeitosa.” Resultado: um dia de suspensão.

Hoje, os alunos têm mais liberdade mas continuam sem poder correr e jogar à bola. O campo de jogos está fechado há oito anos porque o muro que o circunda cedeu. Até já podia ter sido arranjado, mas à semelhança de outras intervenções, ficou suspenso à espera das obras da Parque Escolar. De edifício modelar à época em que foi inaugurado, em 1909, o Camões passou a liceu remediado. As salas de estudo, por exemplo, ficam na antiga casa do reitor, onde este vivia com a família, no segundo andar do edifício.

“Piolhos verdes”

O fim da figura do reitor foi uma das conquistas de Abril. É que a história do liceu anda de mãos dadas com a história do país, como retrata o livro Liceu de Camões – 100 anos, 100 Testemunhos, de Sarah Adamopoulos e José Luís Falcão de Vasconcellos. Nos corredores do liceu respirava-se o mesmo medo que se vivia nas ruas, durante o Estado Novo. “Tínhamos aqui a PIDE”, conta Júlio Isidro.

Às quartas-feiras e sábados à tarde, os alunos – o liceu foi unicamente masculino entre 1936 e 1971 – tinham de participar nas paradas da Mocidade Portuguesa no pátio, sob pena de chumbarem por faltas. O apresentador recorda o fascínio que, ainda inocente, tinha por toda a encenação. “Usávamos uns calções caqui apertados por um cinto com um S na fivela, que significava Servir Salazar.” A camisa verde e a gravata compunham o resto da farda. “Chamávamo-nos uns aos outros piolhos verdes”, diz.

Júlio Isidro foi aluno de notáveis como Vergílio Ferreira e Mário Dionísio. Lembra-se de ter falado uma única vez com o reitor, para ser interrogado sobre um “acidente” no laboratório de Química. Ricardo Silva não imagina o que seria não poder hoje falar com o director. “Não existe distância” entre alunos e direcção e isso compensa as salas frias e as paredes a cair, garante.

Ricardo Silva vai estar na terça-feira a ajudar na organização da gala, que envolve toda a comunidade escolar dentro e fora das aulas. Está tudo a trabalhar para um objectivo comum, gravado na faixa pendurada a entrada da escola, que cita um verso de Camões: “É fraqueza desisir da cousa começada”.

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