Só uma coisa é certa: Merkel não terá a cimeira que ambicionava

A chanceler queria uma grande manifestação de multilateralismo. Fez do Acordo de Paris e do comércio livre as suas grandes bandeiras. Donald Trump, a turbulência mundial e a crise nuclear coreana limitam os seus objectivos.

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O maior medo de Merkel é que Trump faça explodir a cimeira, escreveu a Spiegel Michael Kappeler/Reuters
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Em Hamburgo continuam os protestos contra a presença dos líderes mundiais PAWEL KOPCZYNSKI/REUTERS

As expectativas não são as melhores para a cimeira do G20 que começa hoje em Hamburgo, presidida pela chanceler alemã. É a primeira de Donald Trump, o “grande perturbador” da cena internacional. Decorre em plena crise nuclear provocada pela Coreia do Norte, provavelmente a maior desde a crise dos mísseis de Cuba em 1963. Arrisca-se a revelar uma imagem de instabilidade e de divisões na cena internacional. E se já não chegasse a permanente ameaça terrorista, o regresso das manifestações violentas contra a globalização constitui mais um factor de preocupação para a chanceler.

A presença de Trump ajudou a animar as hostes. O que a chanceler já sabe é que esta não será a cimeira que desejava, destinada a mostrar o caminho de um mundo mais cooperativo, mais inclusivo, mais aberto ao multilateralismo. Ontem voltou a repeti-lo: “O G20 deve enviar um sinal a favor da cooperação multilateral e do comércio livre.”

O seu segundo grande objectivo é a defesa do Acordo de Paris para combater as alterações climáticas. Donald Trump abandonou-o e não há sinais de que queira voltar atrás. Merkel teme que a decisão americana acabe por levar outros parceiros a tentar desvincular-se, alegando que a saída americana afecta as regras de concorrência internacionais.

Mesmo assim, o Presidente americano ofereceu à Europa um pequeníssimo sinal de reconciliação. Em Varsóvia, onde iniciou o seu segundo périplo europeu, tentou apagar a má impressão deixada na cimeira da NATO no final de Maio. Quebrou o tabu do Artigo 5.º (de defesa colectiva) e apresentou-se como o defensor da “civilização ocidental”. “A questão fundamental do nosso tempo é saber se o Ocidente sobreviverá.” Voltou a exigir aos europeus mais gastos com a defesa. Instou a Rússia a pôr cobro à actividade “desestabilizadora” da Ucrânia, rompendo mais um tabu. Por alguma razão escolheu a Polónia. Sabia que teria a melhor recepção possível de um governo que partilha com ele o populismo e o nacionalismo, que não gosta da União Europeia nem da Alemanha. Mas, desta vez, seguiu o guião da Casa Branca. Não é uma reviravolta na reviravolta que operou na política externa dos EUA.

Amanhã pode vir a dizer o contrário. Merkel não se cansou de tentar encontrar pontos comuns na preparação da cimeira. “Ela ainda espera que Trump não faça explodir a cimeira”, escrevia recentemente a Spiegel. Emmanuel Macron já disse e redisse que os EUA continuam a ser “indispensáveis”. Convidou Trump para assistir ao desfile militar do 14 de Julho em Paris, que celebra a entrada dos EUA na Grande Guerra. Acredita que ainda o pode “trazer à razão”. “Os europeus deixaram claro que preferem o compromisso ao conflito”, escreve a Reuters. Merkel avisou, no entanto, que não vai disfarçar as divergências.

Putin em bicos de pés

Putin não gostou do que ouviu. O Presidente russo não gosta de ser preterido em matéria de protagonismo internacional. Haverá em Hamburgo o primeiro encontro entre os dois Presidentes, que Putin insistiu que fosse formal e não uma mera conversa de corredor. Sabe que terá uma recepção fria dos europeus, enquanto não cumprir os acordos de Minsk sobre a Ucrânia. Quanto parecia poder contar com a “camaradagem” que Trump lhe prometeu durante a campanha (“faremos grandes coisas juntos”), viu as suspeitas sobre a interferência russa nas eleições americanas e as estranhas amizades do staff de Trump com a sua entourage criarem uma densa nuvem de suspeição que ata as mãos do seu homólogo americano. Quer pôr na mesa os trunfos de que dispõe na Síria ou na Ucrânia para mostrar que é com ele que os EUA têm de negociar. Na Casa Branca, a preocupação é a contrária: evitar um ambiente demasiado “festivo” entre ambos, que cairia mal na opinião pública. Esta cimeira terá três (e não quatro) protagonistas, escreve Gedeon Rachman no Financial Times: “Os EUA, a China e a Alemanha”.

Xi e a crise nuclear

Xi Jinping roubou a Putin há muito o papel principal. É hoje a peça fundamental na resolução da crise da Coreia, que estará presente em todos os encontros bilaterais, opondo Trump, as suas ameaças veladas e a sua falta de estratégia, ao Presidente chinês. Contra todas as previsões, as relações entre Trump e Xi (a China foi o alvo principal da campanha do candidato) começaram da melhor forma, quando o Presidente chinês o visitou na Flórida, em Março passado. Foi, precisamente, a Coreia do Norte que abriu um inesperado entendimento. Trump acreditou na capacidade (e na vontade) de Pequim de pressionar Pyongyang a abandonar o seu programa nuclear. Acaba de verificar que isso não aconteceu e acusa Xi de não ter feito o necessário. Haverá um encontro entre os dois, prévio aquele que Trump terá com o primeiro-ministro japonês e o Presidente sul-coreano. Os dois países dependem dos EUA para a sua própria defesa. Não há boas (nem más) soluções à vista.

A diplomacia dos pandas

Quarta-feira foi um dia bem passado entre Xi e Merkel em Berlim, que teve direito à apresentação pública de dois novos pandas, oferta de Pequim. A China comprometeu-se com a defesa do Acordo de Paris e do livre comércio. O encontro foi entusiasticamente descrito pelo Presidente chinês, mas a chanceler tratou de deitar alguma água na fervura. Lembrou a Xi que só há comércio livre entre duas partes que respeitam as mesmas regras, o que ainda não é, manifestamente, o caso da China. A Europa continua à espera de reciprocidade.

A ambição chinesa é ir ocupando o espaço deixado vazio pelos EUA. O bom relacionamento com a Europa faz parte dessa estratégia. Mas os europeus estão muito longe de pensar essa relação nos mesmos termos. A chanceler discutiu com ele o seu novo projecto de apoio a África, onde a Europa está a perder terreno diante da crescente presença chinesa e, cada vez mais, indiana. Os dois países acertaram um grande investimento conjunto em Angola para a construção de uma central hidroeléctrica.

A Europa ainda está viva

O maior receio de Merkel é que as questões laterais acabem por ofuscar os seus propósitos, espelhados no Acordo de Paris e na abertura de fronteiras. A chanceler tem sido entronizada como a nova “líder do mundo livre”, embora ela própria rejeite essa honra. Sabe que não pode liderar o Ocidente, porque não tem os meios para o fazer. Com Trump ou sem ele, esse papel continua a pertencer aos EUA sem qualquer alternativa à vista. Tanto ela como Macron farão o impossível para manter o laço transatlântico. Mas foi ela a primeira a dizer que a Europa tinha de começar a fazer muito mais por si própria, incluindo no domínio da sua segurança. Trump e o “Brexit” encarregaram-se de insuflar um novo ânimo à União Europeia. Cabe-lhe a ela e a Macron aproveitá-lo. Theresa May chegará e partirá sozinha. Fora da Europa, o papel do Reino Unido no mundo não será o mesmo.

E o G20 está morto?

O G20, cuja primeira reunião se realizou em Washington em 2008, nasceu da necessidade de coordenar uma resposta mundial à crise financeira internacional. Esse papel foi continuado por Obama, que trouxe um novo alento à cooperação internacional, conseguindo travar uma descida aos infernos da economia global. Muita coisa foi decidida nos anos subsequentes, nomeadamente em matéria de regulação financeira e de combate à tentação proteccionista. Nos anos de Obama, a cooperação internacional tornou-se mais fácil: era essa a sua estratégia. Com a crise já praticamente debelada mas com o mundo em crescente desordem e o novo isolacionismo americano, as virtualidades deste governo mundial informal podem desaparecer rapidamente. E essa seria uma notícia trágica. Citando de novo Rachman, “é difícil imaginar outro momento da história do pós-guerra em que a liderança mundial seja tão contestada e tão incerta”.

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