Paz e guerra na Ásia-Pacífico

A China, o Japão, os EUA e outros Estados envolvidos nas disputas da Ásia-Pacífico, deveriam olhar para o mundo sob o prisma de A Grande Ilusão.

1. A guerra é “A grande Ilusão”. Este foi o título do panfleto do britânico Norman Angell, publicado pela primeira vez em 1909 como Europe's Optical Illusion, e republicado em 1910 já sob o título pelo qual ficou conhecido. A ideia inspirou um notável filme do cineasta francês Jean Renoir, precisamente com o mesmo título (La Grande Illusion, 1937). A interdependência económica, especialmente entre as grandes economias, tornava a guerra fútil e o militarismo obsoleto. Assim acreditava Norman Angell. Mas as suas ideias estavam contra o espírito do tempo. A destruição da Grande Guerra de 1914-1918 ocorreu logo a seguir. Apesar de ter recebido o prémio Nobel da Paz em 1933 — o ano da chegada de Adolf Hitler a chanceler da Alemanha —, as suas ideias também não evitaram a catástrofe da II Guerra Mundial. No mundo de há um século atrás, eram os conflitos e as guerras europeias que ameaçavam a paz mundial. Hoje, são os conflitos da Ásia-Pacífico que podem ter esse papel nefasto para a humanidade.

2. Os pontos de atrito são muitos na Ásia-Pacífico. Recentemente, o Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas interveio, a pedido das Filipinas, num conflito que decorre no mar do Sul da China. Fê-lo, todavia, tendo a sua legitimidade para arbitrar o litígio contestada pela China, a parte demandada judicialmente. No cerne da questão está uma complexa disputa de direitos de soberania. Argumentos de legitimidade histórica misturam-se com interesses económicos e estratégicos. É uma área importante para as rotas do comércio internacional, com potenciais recursos minerais e energéticos significativos no subsolo. É legalmente possível o estabelecimento de uma zona económica exclusiva nas duzentas milhas marítimas, a partir da linha da costa. A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1982) permite-o. Mas o Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas considerou que tal extensão de direitos não se aplica a partir de formações de corais, rochosas e construções artificiais, como pretende o governo chinês. A China já disse não aceitar a decisão. As Filipinas e o Tribunal são (des)qualificados como instrumentos dos interesses norte-americanos na região.

3. Ressurge aqui uma crítica clássica à debilidade do Direito Internacional. O seu normativo e os tribunais que o aplicam só funcionam, em plenitude, contra os mais fracos. As grandes potências não são sancionáveis por meios jurídicos. A própria Carta das Nações Unidas — que instituiu o Tribunal Internacional de Justiça — não está isenta de ambiguidades que alimentam essa percepção crítica. O artigo 94.º nº 1 estabelece que “cada membro das Nações Unidas se compromete a conformar-se com a decisão do Tribunal Internacional de Justiça em qualquer caso em que for parte.” O nº 2 acrescenta: “Se, uma das partes, em determinado caso, deixar de cumprir as obrigações que lhe incumbem em virtude de sentença pelo Tribunal, a outra terá direito de recorrer ao Conselho de Segurança que poderá, se o julgar necessário, fazer recomendações ou decidir sobre medidas a serem tomadas para o cumprimento da sentença." Vê-se facilmente como o sistema não funciona contra as grandes potências. São estas, em último recurso, a quem cabe assegurar a garantia do cumprimento da legalidade internacional. A China é membro permanente do Conselho de Segurança com direito de veto. Não se vai sancionar a si própria, nem deixar que outros o façam.

4. Quando pensamos na contestação movida pela China à ordem internacional do século XXI, a conturbada história europeia do último século vem à mente. Nas décadas finais do século XIX e primeira metade do século XX, a Alemanha foi a principal potência contestatária da ordem internacional estabelecida. Insurgiu-se contra o mundo criado pelas potências europeias tradicionais — Grã-Bretanha, França, Rússia e Áustria-Hungria. Ressentia-o como injusto. Não lhe permitia afirmar-se plenamente como grande potência numa era de impérios coloniais. A Alemanha partiu para a guerra com o intuito de reverter a ordem internacional a seu favor. Foi derrotada duas vezes. Os EUA, a outra grande potência em ascensão, poderiam ter seguindo um caminho similar à Alemanha. Não o fizeram. A sua situação geopolítica excepcionalmente favorável — na sua ilha-continente não têm vizinhos poderosos nas fronteiras —, não é a da Alemanha. Esta última sentia-se cercada por inimigos, a Oeste e a Leste. Os EUA não tiveram os enormes custos do desafiador da ordem estabelecida, nem o das potências que a defendiam na Europa. Beneficiaram da sua entrada tardia, como desequilibradores das guerras. Foram os grandes ganhadores dessa disputa. Estará a China de hoje num papel comparável ao da Alemanha no mundo de há um século atrás?

5. Há possíveis analogias históricas entre a China de hoje, a Alemanha e os EUA da transição do século XIX para o século XX. A contestação ao poder britânico sobre os mares foi posta em prática pelos alemães. A disputa pela supremacia naval da Alemanha à Grã-Bretanha foi uma das causas da guerra desencadeada em 1914 e uma motivação maior dos britânicos para se envolverem no conflito. Mas, na época, o grande teorizador e estratega do poder naval foi um norte-americano: o almirante Alfred Thayer Mahan. O impacto das suas ideias no pensamento político-estratégico da época foi grande, dentro e fora dos EUA. O poder militar, especialmente o naval, era visto como uma peça da competição económica e industrial entre as grandes potências. Garantia o acesso às matérias-primas e aos mercados. Na Alemanha, o Kaiser Wilhelm II determinou que as suas obras fossem leitura obrigatória para os oficiais da marinha imperial. Também a China de hoje está a procurar construir uma marinha de guerra cada vez mais poderosa, contestando a supremacia naval dos EUA, pelo menos na Ásia-Pacífico. Os EUA estarão, assim, no papel da Grã-Bretanha do início do século anterior. A analogia histórica é tentadora. O tempo mostrará se é correcta.

6. O crescente poder económico e militar da China gerou um sentimento de vulnerabilidade e de insegurança no Japão e outros países vizinhos. No Japão, a recente vitória eleitoral de Shinzo Abe pode abrir caminho a uma revisão da Constituição japonesa em matéria defesa. A lógica pacifista imposta pela derrota militar da II Guerra Mundial poderá estar num ponto de viragem. O sentimento de insegurança japonês é acentuado pelo seu relativo declínio económico e demográfico. Quanto à China, tem tido um comportamento ambivalente durante a sua extraordinária trajectória ascendente. Por um lado, aceita a ordem estabelecida, herdada da II Guerra Mundial, procurando reforçar o seu papel nesta e nas principais instituições internacionais. Actua de forma pragmática e estabilizadora. Por outro lado, parece ter uma concepção de Estado que faz lembrar as facetas mais belicosas da Europa e Japão do início do século XX. Uma ideia de soberania irredutível, nunca partilhada e em expansão, que alimenta um nacionalismo agressivo nas disputas territoriais. A China, o Japão, os EUA e outros Estados envolvidos nas disputas da Ásia-Pacífico, deveriam olhar para o mundo sob o prisma de A Grande Ilusão. Hoje, mais do que nunca, importa que percebam a futilidade destruidora da guerra numa era de interdependências intensificadas pela globalização.

Investigador

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