Os cem dias em que Theresa May mudou o Reino Unido

A primeira-ministra britânica não perdeu tempo a aplicar a sua visão para o país - nacionalista e menos liberal. Hoje tem um primeiro embate em Bruxelas, mas o "Brexit" que a levou ao poder parece estar fora da agenda.

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Theresa May, uma primeira-ministra mais nacionalista e menos liberal Justin Tallis/AFP

A primeira-ministra do Reino Unido, Theresa May, estreia-se esta quinta-feira em reuniões europeias em Bruxelas, na data em que cumpre os primeiros 100 dias no cargo a que ascendeu após a surpreendente decisão dos britânicos de abandonar a União Europeia, no referendo de 23 de Junho. Mas o "Brexit" não figura nos pontos oficiais para discussão inscritos na agenda da reunião – só quando os líderes virarem a atenção para "outras matérias de interesse" haverá abertura para falar do assunto.

Segundo a imprensa britânica, a decisão de não incluir o "Brexit" na ordem de trabalhos terá sido decidida pelo presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, que perante a indefinição que vigora desde a data da votação, em Londres e nas outras capitais, prefere não acrescentar ruído antes do início formal do debate. Espera-se, portanto, que Theresa May faça uma apresentação do seu Governo e passe em revista as políticas definidas ou os desafios com que se deparou quando entrou em Downing Street.

“Brexit”

Durante a campanha para o referendo sobre a permanência do Reino Unido na União Europeia Theresa May manteve a solidariedade com o primeiro-ministro David Cameron, em defesa da manutenção do país no clube europeu. Chegada a Downing Street, fez questão de dizer (e insistir) que a vontade dos britânicos expressa a 23 de Maio é para respeitar, e que “’Brexit’ quer dizer ‘Brexit’” – a sua firmeza sustenta-se no seu eurocepticismo de longo prazo. Mas ao fim de cem dias, a primeira-ministra ainda não abriu o jogo sobre o plano para a saída – tem-se limitado a contrariar os seus ministros Boris Johnson (Negócios Estrangeiros) e David Davis (responsável pelo “Brexit”) de cada vez que estes oferecem a sua opinião.

Não se sabe, por isso, qual será exactamente a estratégia do Governo nas conversações, nem qual é o calendário para o processo de separação. A primeira-ministra disse que é sua intenção accionar o artigo 50 do Tratado de Lisboa, que dá o tiro de partida, até Março de 2017.

A grande dúvida diz respeito ao relacionamento futuro entre o Reino Unido e a UE, sobretudo no que diz respeito ao acesso ao espaço único europeu (de pessoas e bens). As decisões de May, que criou um novo Departamento para o Comércio Internacional no seu executivo, sugerem que está a preparar-se para agir fora do bloco. Outros sinais indicam que tanto Londres como Bruxelas estão a preparar-se para um divórcio litigioso. Aliás, Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu e anfitrião da cimeira que arranca esta quinta-feira em Bruxelas, disse que no que diz respeito ao “Brexit”, só havia duas possibilidades: ou o Reino Unido votava não, ou então arcava com as consequências de uma saída bruta.

Imigração e Refugiados

Se houve uma política de Theresa May enquanto ministra do Interior que saiu revigorada do referendo para o “Brexit” foi a que diz respeito à imigração – vários analistas e comentadores políticos interpretaram a votação como um mandato político para o fecho das fronteiras e a restrição significativa da entrada de estrangeiros no Reino Unido. E vários notaram uma coincidência entre o desfecho do referendo e o aumento do número de crimes de ódio ou incidentes de violência religiosa, étnica e racial, que segundo números do ministério do Interior aumentaram 41% no mês seguinte.

Os números relativos à imigração provam que o Reino Unido continua a ser o destino preferencial na Europa (no que diz respeito ao fluxo das entradas e saídas, no ano até Março, atingiu-se um novo recorde de 327 mil pessoas), com o número de imigrantes vindos dos países de Leste a alcançar o máximo histórico. O Governo May pretende fazer cair esse valor para menos de 100 mil por ano.

A primeira-ministra aproveitou a conferência dos tories em Birmingham para “testar” a sua nova abordagem para reduzir a imigração. Se as questões de gestão de fronteiras estão ainda à espera das negociações do “Brexit” com Bruxelas, na atribuição de vistos já se soube por exemplo que as empresas e as universidades que contratem ou patrocinem a vinda de estrangeiros extra-comunitários vão ter de apresentar justificações ao Governo.

Mas ao mesmo tempo que aperta significativamente o acesso a cidadãos vindos de países terceiros, o Governo britânico aceita algumas excepções humanitárias. Por exemplo, Downing Street autorizou a entrada de centenas de menores desacompanhados que aguardavam no campo improvisado de Calais, na entrada francesa do Canal da Mancha, uma oportunidade de se reunirem a familiares que vivem no Reino Unido.

Emprego e investimento

Sob a liderança de Philip Hammond, o braço-direito de Theresa May, o Governo britânico mudou radicalmente o rumo nas suas políticas de finanças e economia, que deixaram de ter em vista a redução do défice (o objectivo de George Osborne era chegar a 2020 com um superavit orçamental) com a aplicação de medidas de austeridade. Assim, no próximo mês, deverão ser conhecidos em detalhe os planos fiscais e de investimento cujos contornos foram delineados na conferência do Partido Conservador de Birmingham: a despesa pública será canalizada para infraestruturas e para o apoio a sectores industriais cruciais que, nas palavras da primeira-ministra, asseguram postos de trabalho à classe média. Na altura, May disse que não lhe interessa manter o actual cenário de juros baixos ou de soluções para estimular a economia do tipo “quantitative easing” que, na sua opinião, têm efeitos secundários indesejáveis para a classe média e os aforradores.

Nos primeiros cem dias de governação de Theresa May, os propalados efeitos catastróficos do “Brexit” na economia ainda não se verificaram, apesar de num primeiro momento a bolsa londrina ter sofrido um baque (com o FTSE 100 a cair 6%) e a libra a desvalorizar brutalmente, perdendo 18% contra o dólar e batendo no mínimo dos últimos três anos face ao euro. A acção do banco central revelou-se crucial para suster o golpe: em Agosto, a taxa de juro caiu de 0,5% para 0,25%, a primeira redução do custo do dinheiro desde 2009 e que fixou um novo recorde (que o governador Mark Carney admite rever novamente antes do fim do ano).

Mas o ambiente de incerteza continua a alimentar a desconfiança e o pessimismo, com grandes instituições financeiras a reconsiderarem a manutenção na City; organizações como a OCDE ou o FMI a cortarem as suas previsões para o crescimento, e agências de rating como a Standard & Poor’s prevenir os investidores dos impactos negativos da saída da UE, que se farão sentir durante “vários anos”.

Estado Social

A prioridade do Governo para o Serviço Nacional de Saúde (NHS) é não deixar que o buraco de 22 mil milhões no orçamento aumente. May terá dito que não vai haver mais verbas para o NHS em reuniões com os responsáveis, apesar dos alertas destes para o facto de que há hospitais perto do ponto de ruptura, segundo o diário The Guardian. Fontes das Finanças confirmaram que o próximo orçamento não incluirá verbas extra para o NHS – apesar de cada vez mais pedidos de responsáveis e da expectativa pública de que haveria mais investimento no serviço público de saúde se o Reino Unido votasse para sair da UE.

Escócia e Irlanda do Norte

A chefe do Governo autónomo da Escócia, Nicola Sturgeon, já avisou que não hesitará em levar a cabo um novo referendo à independência caso o Governo de May opte pela chamada "hard Brexit", uma saída da União Europeia em que o Reino Unido abandone todos os mecanismos da UE para poder controlar a imigração. Sturgeon já tinha dito que era inaceitável que os escoceses, que no referendo votaram de forma a manter-se na UE, fossem agora obrigados a sair.

A Irlanda do Norte também votou maioritariamente pela permanência e o vice-primeiro-ministro Martin McGuiness afirmou que o impacto na região seria “muito profundo” e que as duas Irlandas deveriam poder votar uma reunificação. Também a República da Irlanda reagiu, e o primeiro-ministro irlandês, Enda Kenny, anunciou no domingo um encontro de líderes políticos dos dois lados da fronteira para preparar a região para as consequências do "Brexit".

Oposição

Foi pacífica a passagem do poder de David Cameron — que venceu as eleições do ano passado com a maioria absoluta que a relaização do referendo lhe deu — para Theresa May. Porém, uma sondagem da YouGov diz que, actualmente, só um em cada seis cidadãos está satisfeito com a forma como a primeira-ministra está a gerir o processo de mudanças necessárias à saída da União Europeia.

Este sentimento da opinião pública não tem, porém, eco no Parlamento de Westminster, onde o principal partido da oposição, historicamente mais europeísta, pouco se tem feito ouvir. O Partido Trabalhista passou meses envolvido numa guerra intestina pela liderança, finalmente assumida por Jeremy Corbyn, que acaba de ser reeleito e ganhou maior legitimidade para aplicar o seu estilo e agenda, bastante mais à esquerda do que as últimas lideranças do Labour (Ed Milliband, o anterior, ficou a 15 pontos de Cameron nas legislativas).

Corbyn prometeu unir o partido — há quem considere a tarefa impossível, com uma facção nostálgica a desejar o regresso de outro Milliband, David, ou a sonhar com o regresso de Tony Blair, que recentemente falou nisso (de forma vaga, mas falou) para o tornar numa oposição eficaz, primeiro, e uma força capaz de vencer eleições, depois. A dúvida é como cumprirá essas promessas este anti-europeísta convicto que mal se mostrou durante a campanha do seu partido (pela permanência) antes do referendo.

Noutro espectro político, a oposição do UKIP não se revelou um problema; nem deverá sê-lo nos próximos tempos. O partido anti-imigração e xenófobo desagrega-se — uma nova líder demitiu-se, um candidato a líder desistiu e Nigel Farage é o presidente interino, mas é agora um político com pouco apelo junto do eleitorado — e a sua agenda foi parcialmente absorvida nestes cem dias.

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