O Brasil entre a dúvida do que existe e o medo do que pode acontecer

O Brasil conhece este domingo os resultados da eleição mais disputada desde 1989. Os eleitores querem mudanças, mas temem o desconhecido e preparam-se para dar vantagem a Dilma Roussef. Incapazes de firmar uma alternativa, Marina Silva e Aécio Neves lutam entre si por uma oportunidade numa provável segunda volta.

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Dilma e Lula em campanha em São Paulo Miguel Schincariol/AFP

Os 142,5 milhões de brasileiros que hoje votam nas eleições presidenciais viram de tudo nas últimas semanas de campanha: o drama do candidato Eduardo Campos, vítima de um desastre aéreo, a revelação de escândalos de corrupção envolvendo empresas estatais, ataques pessoais, demagogia, episódios de violência entre facções inimigas, a festa e a criatividade que faz parte do jeito especial do Brasil ser e, principalmente muita incerteza sobre os resultados.

No final do dia de hoje, tudo pode acontecer: Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT) pode ser eleita na primeira volta, mas quer Aécio Neves, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), quer Marina Silva, do Partido Socialista Brasileiro (PSB), podem passar o teste de hoje e disputar com a presidente a vitória final no segundo turno. Com excepção das presidenciais de 1989, que opuseram Lula da Silva e o histórico Leonel Brizola na primeira volta, nunca o Brasil assistiu a uma eleição tão renhida.

Com tudo em aberto, a memória da campanha constrói-se sobre um cenário de permanentes mudanças nas sondagens. Quando sucedeu a Eduardo Campos no papel de candidata, Marina Silva surgiu lado a lado com Dilma Rousseff nas intenções de voto e chegou mesmo a ameaçar a presidente de uma vitória na segunda volta. Aécio Neves tornara-se então na grande vítima do “furacão Marina”. O candidato do PSDB estava, no princípio de Setembro, a mais de 20% de distância. É então que Dilma e o PT decidem mobilizar os imensos recursos de um partido que não só tem a vantagem de estar no Governo como de dispor de uma rede de militância imbatível para, como disseram os seus apoiantes, “tirar a santa do seu santuário”.

Dilma anunciou que tinha chegado a hora de “a onça beber água”, e foi dinamitando um a um os trunfos de Marina. A sua estratégia, definida pelo marqueteiro João Santana, passava por avisar a opinião pública que Marina e Aécio se preparavam para acabar com os programas sociais ou para privatizar a Petrobras, o gigante estatal da energia que, apesar ser o centro de um escândalo de corrupção que envolve altas figuras do PT, incluindo um ministro, é para os brasileiros o símbolo da soberania nacional sobre os recursos naturais. No tempo de antena da TV, a intenção de Marina em conceder independência ao Banco central, como acontece na Europa ou nos Estados Unidos, foi dinamitada com um vídeo em que uma família vê a comida a desaparecer dos seus pratos ao mesmo tempo em que um grupo de banqueiros se ri.

Com esta estratégia, Dilma, a “presidente imperial”, na definição do candidato Eduardo Jorge, do Partido Verde, colocou os seus adversários na defensiva. “Acho que para ser presidente, a gente tem de aguentar a barra. Se a pessoa não quer ser pressionada, não quer ser criticada, não quer que falem dela, não dá para ser presidente da República”, justificar-se-ia Dilma. Em duas semanas, a presidente recuperou o primeiro lugar nas preferências de voto, Marina entrou em queda irreversível e viu a sua vantagem sobre Aécio Neves encurtar de 20 para apenas três por cento dos votos, o que coloca os dois candidatos na margem do empate técnico.

Os “pobres no orçamento”
Enquanto flagelava os adversários, Dilma Rousseff tratou de cimentar a sua base natural de apoio: os mais pobres. No último debate entre candidatos, na quinta à noite, na TV Globo, a presidente enfatizou: “Nós colocámos os pobres no orçamento”. Ao todo, o governo alimenta 18 programas sociais que beneficiam 87 milhões de pessoas. O Bolsa Família chega a 22% do eleitorado mais pobre, mas programas como o Pronatec, que criou oito milhões de vagas no ensino técnico, o Ciência Sem Fronteiras, que financiou no ano passado mais de 100 mil bolsas de estudo em universidades estrangeiras (uma boa parte em Portugal) ou o Minha Casa Minha Vida, que abrange a construção de 3.6 milhões de casas, beneficiam toda a classe média.

As políticas sociais iniciadas no governo de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, e ampliadas e reforçadas na era de Lula da Silva tiveram o mérito de transformar o Brasil. E de conceder ao PT um trunfo eleitoral temível. A miséria extrema que tornava intolerável a imagem urbana de cidades o Rio de Janeiro ou o Recife reduziu-se radicalmente. O rendimento do quarto da população mais pobre aumentou 45% desde 2002. Mais de 40 milhões de brasileiros saíram da pobreza. Este ano, pela primeira vez, o país não consta no mapa da fome da ONU. Para a insuspeita OCDE, “o Brasil fez progressos notáveis”. Empurrado pela conjuntura favorável da economia mundial para os países emergentes, criaram-se só nos últimos anos 23 milhões de postos de trabalho, a maioria dos quais nos serviços para os quais não era necessária grande qualificação (no comércio, principalmente), o que permitiu aos jovens das classes mais baixas chegar ao mercado de trabalho.

No final do mandato de Lula, o Brasil estava no auge, tinha provavelmente vivido a melhor década desde que um golpe militar derrubou o Imperador Pedro II, em 1889. Dilma viveu e vive desse rendimento. Nas sondagens, obtém 49% dos votos dos eleitores que recebem até dois salários mínimos (cerca de 470 euros) e 35% dos que ganham até cinco salários mínimos. Marina Silva domina com 30% o grupo entre os cinco e os 10 salários mínimos (30%, contra 29% de Dilma e 28% de Aécio), enquanto o candidato do PSDB só ganha claramente entre os que ganham mais de 10 salários mínimos (39% contra 30 de Marina e 22% de Dilma).

Pelas mesmas razões, a candidata do PT é hegemónica nos estados do Norte e do Nordeste, que capta metade das ajudas do Bolsa Família. Aí, mesmo em estados onde os governadores são do PSDB, como no Pará, Dilma consegue margens sempre superiores a 50% dos votos. Para lá do apoio directo a milhões de famílias carentes, o fluxo financeiro dos programas sociais disseminou o crescimento económico pelas zonas mais pobres. Wanderley Guilherme dos Santos, um dos mais destacados cientistas políticos do Brasil, invoca a propósito um estudo do IBGE, o organismo estatístico do Brasil, que mostra um crescimento do rendimento médio per capita anual no Norte e no Nordeste do país entre 2003 e 2012 acima da média nacional – 3% e 2.9% contra 2.4%.

Conjugando estes resultados, podia-se por isso prever que a disputa eleitoral se trava entre os pobres e os outros, com Dilma a comandar os primeiros e Marina e Aécio Neves a capitanear a classe média e a classe alta. Essa conclusão, porém, negaria a complexidade da sociedade brasileira. “Há muitos empresários que beneficiaram muito do crescimento do mercado interno que estão ao lado de Dilma”, nota Wanderley Guilherme dos Santos. Nas manifestações de rua do PT tanto se vê gente dos bairros populares ou das favelas como militantes de classe média. A força do partido entre a intelectualidade universitária e os meios culturais é real.

Para lá destas âncoras, o PT dispõe de um trunfo de peso: Lula da Silva. O político mais prestigiado do país é um activo tão importante que a sua imagem aparece em montagens de Photoshop na propaganda de milhares de candidatos pelo Brasil fora – é também a entidade que inspira mais candidatos-covers, que usam o seu nome ou imagem, logo depois de Deus. E se o partido é combatido pela grande imprensa paulista e carioca, muniu-se de uma rede de “blogueiros” e de activistas nas redes sociais capazes de orientar o debate político com eficácia. Depois, o PT e os seus aliados dominam com mão de ferro o aparelho do estado e, com frequência, são acusados de o usar a seu favor. Esta semana, num vídeo de ar clandestino, um deputado estadual, Durval Ângelo, dizia que “a presidente Dilma só chegou a ‘40%’ dos votos em Minas Gerais” porque “tem dedo forte dos petistas dos Correios” na distribuição da propaganda da candidata e no atraso no envio do material dos rivais. O PSDB avançou com uma queixa nos tribunais.

A batalha perdida
Fora deste universo controlado pelo PT, situam-se as classe médias e altas, que não apenas rejeitam o PT como manifestam uma profunda aversão ao partido e aos seus candidatos. A classe alta foi, ao lado dos mais pobres, beneficiada pelo florescimento da economia que durou desde a subida de Lula ao poder, em 2002, até ao ano passado. O rendimento dos 25% mais ricos aumentou 13% desde então. Essa elite económica é o bastião do eleitorado de Aécio Neves e habita principalmente em São Paulo, em Mins Gerais ou nas prósperas cidades do Paraná, onde estão quase 40% dos eleitores do Brasil. É a que mais contesta a carga fiscal que representa 38% do PIB (um valor quase europeu, bem acima dos 20% em média na América Latina) e a que mais se preocupa com a recessão que chegou à economia no segundo trimestre, com a estagnação da economia (o “pibinho”) ou com a desvalorização da moeda.

Para esta faixa do eleitorado, Marina chegou a ser o bálsamo que faltava para pôr termo aos 12 anos de poder do PT. Agora, a elite está desiludida e dividida entre a candidata do PSB e Aécio Neves. Após a revelação de sondagens que, pela primeira vez, colocaram Marina Silva atrás de Dilma numa segunda volta, a Bolsa de São Paulo registou a maior queda desde Dezembro de 2008.

Fora desta equação, uma fatia importante da classe média, quer igualmente mudanças, mas hesita e divide-se entre Marina Silva e Aécio Neves. “A classe média que tem algo estabelecido agora quer mais. Sente-se achatada entre os ricos e os pobres e é a mais descontente”, diz Paulo Victor Melo, cientista político da Universidade Federal de Minas Gerais. Inicialmente, Marina era a candidata que melhor parecia captar a atenção dos 79% dos eleitores que queriam mudanças. A sua campanha ficou longe de cumprir essas expectativas-

Se Marina falhou, também Aécio teve dificuldades em firmar o seu discurso. Desgastado pela propaganda que nas redes sociais o apontavam como consumidor de cocaína, ou de playboy que batia na mulher, o “tucano” (ave que é o símbolo do PSDB) ficou refém da apologia dos programas sociais de Dilma e foi incapaz de desenvolver uma agenda própria. “A classe média queria algo de novo e Aécio não lhes deu nada de novo”, diz Paulo Victor Melo. Nos últimos dias, inscreveu na agenda algumas das marcas do seu partido: meritocracia, facilitação dos negócios, reforma fiscal capaz de reduzir as 2600 horas por ano que as empresas gastam a gerir os impostos (a média da OCDE são 176 horas) ou o corte do número dos ministérios para metade (são 37). Ao mesmo tempo, prometeu acabar com “o Estado brasileiro ao serviço de um projecto de poder”, o do PT.

Na luta final pelos votos dos indecisos, Marina aparece na posição mais vulnerável. A sua candidatura não dispõe de uma estrutura de campanha capaz de rivalizar com a dos seus adversários. O partido pelo qual concorre, o PSB, tem apenas 24 dos 513 deputados federais e a sua implantação em São Paulo e Minas Gerais, governados pelo partido de Aécio, é residual. Há poucos cartazes seus nas ruas, os carros de som com o seu hino são raros e é difícil até encontrar “formiguinhas” a distribuir os seus “santinhos” (pequenos papéis de propaganda). Na sexta, a sua “carreata” pelo Rio, os candidatos do PSB primaram pela ausência. Para agravar os seus problemas, a tendência dos eleitores para penalizarem que cai nas sondagens “costuma acentuar-se no fim-de-semana da eleição e especialmente no dia da votação”, na avaliação de Mauro Paulino, director do Datafolha.  

Ao contrário de Dilma Rousseff, que dispõe de uma militância fervorosa que ilude a imagem de um país que não cresce ou de um Governo incapaz de travar o flagelo do clientelismo e da corrupção, Aécio e Marina não conseguiram deixar de ser vistos na campanha como figuras secundárias cujo sentido principal era o de servirem de depositários da hostilidade ao PT e à presidente. Uma campanha como a de 2002, quando Lula se apresentou com um programa corajoso e radicalmente diferente, esteve longe de acontecer. Entre o romantismo verde de Eduardo Jorge, o radicalismo da extrema-esquerda de Luciana Genro e o conservadorismo boçal de Levy Fidelix (Tenho 62 anos, e pelo que eu vi na vida, dois iguais não fazem filho. E digo mais, desculpe, mas aparelho excretor não reproduz”, afirmou num debate na TV), a falta de ambição de Aécio e Marina ajudou a consolidar Dilma e o PT. É por isso que pelo menos 40% dos eleitores vão votar hoje pela continuidade. Mesmo que a não apoiem por completo.

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