“Não podemos deixar que os que espalham o ódio dividam a nossa sociedade”

Morte de Jo Cox congelou a campanha para o referendo à União Europeia, um debate sequestrado pela retórica contra a imigração. País em choque presta homenagem à deputada trabalhista.

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O primeiro-ministro, David Cameron, e o líder do Labour, Jeremy Corbyn, estiveram juntos em Birstall AFP/OLI SCARFF
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Líderes falaram a metros do local onde Jo Cox foi atacada e assassinada AFP/OLI SCARFF
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Memorial em frente a Westminster foi-se enchendo de mensagens e tributos REUTERS/Stefan Wermuth
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Choque e consternação com a morte de Jo Cox AFP/Daniel Leal-Olivas
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Há 25 anos que o Parlamento britânico não perdia um dos seus e nunca uma deputada tinha sido morta no exercício das suas funções. Um dia depois do brutal assassínio em Birstall, nos arredores de Leeds, as homenagens a Jo Fox – deputada trabalhista, activista dos direitos humanos e mãe de duas crianças pequenas – fazem-se com lágrimas e vozes embargadas, num silêncio chocado que calou uma das mais acrimoniosas campanhas de que há memória no Reino Unido. A retórica contra a imigração, que crescia de dia em dia, tornou-se de repente mais inaceitável.

“Eu não a conhecia, mas ela era simplesmente incrível”, diz uma ciclista, de olhos molhados, depois de deixar um postal com uma dedicatória no memorial que foi crescendo durante todo o dia na praça frente ao Palácio de Westminster. Na véspera, amigos e colegas do Partido Trabalhista levaram para ali uma fotografia de Cox, sorridente nos seus primeiros dias como deputada. Juntaram-lhe mensagens, velas e algumas flores. Quase todas repetindo o apelo feito pelo marido, Brendan, na mensagem que divulgou pouco depois de Cox ter sido declarada morta: “Ela quereria que nos uníssemos para lutar contra o ódio que a matou”.

A manhã, uma típica manhã cinzenta de Londres, começou ainda mais triste em Westminster, com cadência de gente que chega, deixa uma flor, acende uma vela ou se limita a ficar em silêncio. Sem palavras. À noite, a praça voltaria a encher-se numa vigília de luto, uma entre as dezenas convocadas por todo o país.

“Estou chocada, triste e deprimida”, confessa Fionna Tod, entre um grupo de funcionários do Partido Liberal-Democrata que, a meio da manhã, veio homenagear Jo Cox. Não a conhecia pessoalmente, mas diz que a deputada, eleita no ano passado, depressa se fez notar nos debates sobre política externa “pela sua incrível eloquência e empenho, pelas suas convicções fortes, numa área que é habitualmente dominada por homens de meia-idade”.

Cox, que foi activista e dirigente da organização Oxfam antes de ser deputada, estreou-se no Parlamento com um discurso celebrava a contribuição dos imigrantes na sociedade britânica e foi um dos principais rostos da campanha que convenceu o Governo conservador a acolher mais crianças refugiadas que chegaram sozinhas à Europa. A lembrá-lo, num bouquet de flores alguém escreveu a letras gordas “Refugees Welcome!”

Grace Guppy, jovem militante trabalhista, também só a conhecia da televisão. Foi a Westminster homenagear a activista, a “mãe que saiu para trabalhar e nunca mais regressará a casa”. Não sabe se a deputada foi morta por causa das suas convicções, mas sabe que esta campanha contribuiu para extremar o debate político e fazer esquecer “que a diversidade sempre fez parte do Reino Unido” . “Temos que tirar o ódio das manchetes dos nossos jornais. Os políticos têm de parar de atirar lama uns para cima dos outros”.

“Um ataque à democracia”

“Ela foi-nos levada num acto de ódio, um acto vil. Foi um ataque contra a democracia o que aconteceu aqui. Um poço de ódio matou-a”, disse Jeremy Corbyn, o líder do Partido Trabalhista, que foi a Birstall na companhia do primeiro-ministro conservador, David Cameron. Passavam exactamente 24 horas desde que Jon Cox tinha sido baleada e esfaqueada, a apenas alguns metros dali, na zona onde nasceu e que agora representava.

Cameron e Corbyn, que apesar de lutarem do mesmo lado na campanha para o referendo à União Europeia ainda não tinham aparecido juntos, uniram-se para repudiar um “ataque contra a democracia” e homenagear “uma das mais apaixonadas e brilhantes” deputadas do Parlamento.

As campanhas contra e a favor da permanência do Reino Unido na UE decidiram suspender por mais um dia as principais acções agendadas e têm-se mantido o mais discretas possível, recusando fazer quaisquer ligações entre a morte da deputada e o referendo da próxima quinta-feira. Mesmo que Cox, como a quase totalidade dos parlamentares trabalhistas, fosse uma acérrima pró-europeia – na véspera de ser morta esteve com o marido e os dois filhos pequenos nos barcos que saíram ao caminho da flotilha anti-UE em que Nigel Farage subia o Tamisa.

Mas as informações que vão chegando reforçam as suspeitas de que por trás do ataque poderão estar motivações racistas – testemunhas contam que Tommy Mair, um homem de 52 anos que teria problemas mentais, terá gritado “Britain First” (“os britânicos em primeiro lugar”, que é também o nome de uma organização de extrema-direita) ao atacar Cox. A imprensa adianta também que o suspeito, que continua a ser interrogado teria mantido contactos com grupos neonazis.

Suspeitas que podem ser tóxicas para a campanha pela saída da UE, que tem no controlo da entrada de imigrantes o seu principal argumento. “Temos aqui tantos europeus que os nossos jovens se confrontam com as perspectivas de não ganharem o suficiente para viver”, dizia ao PÚBLICO Richard Johnson, militante do Partido Conservador e activista pelo "Brexit" pouco antes de conhecida a notícia da morte de Cox.

Nesta sexta-feira em Birstall, Corbyn também evitou fazer ligações. Mas, de semblante carregado, deixou um apelo, em nome de Cox: “Em sua memória, não podemos deixar que aqueles que espalham ódio e veneno dividam a nossa sociedade”, pediu o líder do Labour, de semblante carregado.

Palavras que não podem ser desligadas da campanha, a mesma que horas antes da deputada trabalhista ser morta atingiu um novo mínimo com o lançamento de um novo cartaz do UKIP, o partido anti-europeu liderado por Nigel Farage. “À beira do colapso”, lia-se nas enormes letras garrafais vermelhas sobrepostas sobre a fotografia de uma coluna de refugiados em marcha pela Europa (terá sido tirada na Croácia, no Verão passado). Em baixo, a letras mais pequenas, a mensagem nada subliminar: “Temos de libertarmo-nos da UE e recuperar o controlo das nossas fronteiras”.

“Não, Nigel Farage não é responsável pela morte de Jo Cox. Nem ninguém da campanha pela saída”, escreveu o colunista Alex Massie na revista conservadora The Spectator. “Mas eles são responsáveis pela forma como apresentam os seus argumentos […] e quando encorajamos a raiva não podemos fingir surpresa se as pessoas ficam enraivecidas.”

Jonathan Freedland, no jornal Guardian, sublinhava que talvez as sugestões xenófobas de Farage ou as críticas da campanha pela saída liderada por Boris Johnson, nada tenham a ver “com a crueldade que privou duas crianças pequenas da sua mãe” e que “talvez tenha sido uma coincidência o assassino ter atacado neste momento”. “Não sabemos ainda, o que sabemos é que esta campanha destrui um tecido que demorou anos a tecer”, um consenso que aceitava “a diversidade como uma força e não como algo que deve ser temido”, no qual mesmo os debates apaixonados podiam ser travados com civilidade. “Aconteça o que acontecer quinta-feira, temos de o reparar.”

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