Houve “batalha naval” no Tamisa, mas a guerra será em Westminster

Ministro das Finanças britânico acena com orçamento de forte austeridade em caso de “Brexit” e Governo enfrenta motim na bancada parlamentar conservadora.

Partidários da saída do Reino Unido da UE num dos barcos de pesca que navegou no Tamisa
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Partidários da saída do Reino Unido da UE num dos barcos de pesca que navegou no Tamisa Stefan Wermuth / Reuters
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Traineiras do movimento "Fishing for Leave" Stefan Wermuth / Reuters
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O cantor Bob Geldof a bordo de um dos barcos dos apoiantes da permanência do Reino Unido na UE Stefan Wermuth / Reuters
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Barcos dos apoiantes do "Brexit" depois de passarem por baixo da Tower Bridge Stefan Wermuth / Reuters
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Barco de membros do movimento pelo "Brexit" passam ao largo da Torre de Londres Ben Stansall / AFP

O líder do UKIP e principal rosto do movimento pela saída do Reino Unido da União Europeia, Nigel Farage, tinha prometido fazer navegar uma “armada” pelo rio Tamisa, em Londres. O que os proponentes do “Brexit” não tinham previsto era a rebeldia do cantor e activista Bob Geldof, que não quis deixar o rio londrino entregue aos eurocépticos.

Foi na sexta-feira que cerca de 30 barcos de pesca saíram do porto de Ramsgate, no sudeste, na direcção de Londres, com o objectivo de alcançar Westminster à hora que se iniciava a sessão de perguntas ao primeiro-ministro, David Cameron, na Câmara dos Comuns. Pela manhã a “armada” de Farage chegava ao centro da city londrina, mas quando se preparava para passar pela icónica Tower Bridge, foi interceptada por um conjunto de botes de borracha e pequenos barcos.

Perguntas e Respostas: O como e o porquê de uma decisão histórica

Num deles estava o cantor Bob Geldof, o fundador da iniciativa de angariação de fundos para fins humanitários conhecida como Live Aid, com uma mensagem muito simples: “Nigel, és uma fraude.” A iniciativa promovida pela campanha a favor do “Brexit” queria denunciar os abusos das políticas europeias em relação ao sector pesqueiro, que Farage diz estarem a “destruir” as comunidades costeiras.

Mas, para Geldof, o líder do UKIP “não é amigo dos pescadores”. “Aqui estão os factos sobre as pescas. O Reino Unido faz mais dinheiro a partir das pescas do que qualquer outro país da Europa. Dois, o Reino Unido tem a segunda maior quota de pesca na Europa, a seguir à Dinamarca.”

Ao Guardian, Farage acusou Geldof de não saber “nada sobre a política comum de pescas”. “Não se pode reformar [a UE] por dentro. Não se pode mudá-la. Não há nada a fazer para além de sair”, afirmou o líder eurocéptico.

Para organizações como a Greenpeace, o problema porém não está nas políticas comunitárias, mas sim na concentração das quotas de pesca nas mãos de um grupo restrito de grandes empresas. “A distribuição dos direitos pesqueiros dentro da frota britânica é inteiramente responsabilidade do Ministério das Pescas”, disse à BBC o director de campanhas da organização, John Sauven. “Os apoiantes do ‘Brexit’ como Nigel Farage estão a explorar cinicamente a ira legítima de muitos pescadores britânicos para obter ganhos políticos”, acrescentou.

A par da guerra de palavras, no Tamisa houve igualmente uma guerra para ver quem se fazia ouvir mais alto. No seu barco, Geldof fez soar um poderoso sistema de som e tocou a música The In Crowd que abafou as palavras de ordem dos membros do movimento pelo “Brexit”. Farage acusou o “multimilionário Geldof” de faltar ao respeito aos pescadores que o acompanhavam. Os dois grupos envolveram-se em pequenos confrontos, disparando jactos de água, e chegou a ser necessária a intervenção da polícia marítima.

Enorme aumento de impostos

Os ânimos aqueceram com a entrada da campanha no domínio aquático. Mas é no dia seguinte à hipotética vitória dos eurocépticos que as águas se podem agitar seriamente. O secretário do Tesouro, George Osborne, revelou esta quarta-feira que na eventualidade de uma vitória do “Brexit” no referendo de 23 de Junho, o Governo terá de aplicar fortes medidas de austeridade para fazer face a um buraco orçamental. O “preço” da potencial saída do Reino Unido da UE será de 30 mil milhões de libras (38 mil milhões de euros), de acordo com estudos sobre o impacto do “Brexit” realizados pelo Instituto de Estudos Fiscais.

As medidas que entrariam nesta “austeridade auto-imposta”, como lhe chamou Osborne durante o programa BBC Today, incluem subidas dos impostos sobre os rendimentos, das heranças e do IVA para as bebidas alcoólicas e combustíveis. Mas estas medidas fiscais apenas iriam cobrir metade da factura do “Brexit”.

O plano orçamental de contingência inclui cortes nos serviços públicos, desde o serviço nacional de saúde, a educação e a defesa, passando por reduções das pensões, nos serviços de segurança e nos transportes, escreve o Financial Times. “O país não tem um plano se sairmos da UE”, garantiu Osborne.

“Longe de libertar dinheiro para gastar nos serviços públicos, como a campanha do ‘Leave’ queria que acreditassem, sair da UE significaria menos dinheiro. Milhares de milhões a menos”, afirmou o ministro. “É uma situação de derrota dupla para as famílias britânicas e não deveríamos arriscar isso.”

O responsável pelas Finanças apareceu no programa da BBC ao lado do seu antecessor, o trabalhista Alistair Darling, para mostrar uma frente unida do lado da campanha pela permanência na EU e para fazer regressar o debate à esfera económica — e afastá-lo das questões migratórias, amplamente levantadas pelo UKIP ao longo da campanha.

Deputados rebeldes

Mas a estratégia de dramatizar o cenário da saída do Reino Unido da UE do ponto de vista económico pode vir a sair cara ao Governo de David Cameron. Várias dezenas de deputados conservadores já vieram a público revelar que vão chumbar as medidas de austeridade antecipadas por Osborne.

Uma declaração, assinada por 57 deputados conservadores e divulgada pelo movimento pela saída, critica os planos “absurdos” do secretário do Tesouro e reforça a imagem de um partido altamente dividido. “Se o chanceler fala seriamente, então não podemos deixar isto ir avante”, garantem os deputados, encabeçados pelo ex-ministro Iain Duncan Smith.

Os conservadores dispõem de uma larga maioria na Câmara dos Comuns e a ameaça do chumbo por parte da sua ala eurocéptica a que se soma o chumbo também já anunciado dos trabalhistas não deve impedir a aprovação do pacote de austeridade enunciado por Osborne. Porém, a dureza da declaração dos deputados rebeldes deixa antecipar a eclosão de uma mais que provável crise política, quando sublinham que “a posição do chanceler se tornará insustentável”.

Quem também se prepara para o que até há pouco tempo seria um cenário impensável, confinado a blogues especializados em teorias obtusas, são os mercados financeiros. Os principais bancos mundiais estão a formar equipas especiais para trabalhar em contacto permanente com as filiais londrinas durante o dia e a noite do referendo, segundo apurou a Reuters.

“Todos passámos por eleições nos EUA, eleições gerais no Reino Unido, tivemos o referendo escocês, o colapso do Lehmans e o QE [medidas de estímulo financeira denominadas quantitative easing], mas este é de longe o maior acontecimento de risco que alguma vez se apresentou perante o Reino Unido”, disse o analista no banco Investec, Chris Huddleston. Investidores, banqueiros e especialistas aguardam uma sessão histórica, comparável à chamada “Quarta-feira Negra”, em Setembro de 1992, durante a qual a negociação da libra nos mercados internacionais chegou a ser suspensa. “Se houver ‘Brexit’, então estaremos perante algo pelo menos na mesma escala da Quarta-feira Negra”, disse à Reuters o dirigente do Banco Nacional da Austrália, Nick Parsons, que estava em Londres na época.

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