Encontro em Lisboa reúne oposição e juízes brasileiros e assusta políticos portugueses

Marcelo Rebelo de Sousa, que encerraria o encontro, diz que “será de certeza muito difícil” comparecer.

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Michel Temer, o vice-Presidente do Brasil, está no centro de uma intriga para um cenário pós-impeachment /Ueslei Marcelino/Reuters

A data é simbólica: 31 de Março de 2016, exactamente 52 anos depois do golpe militar que depôs o Presidente eleito João Goulart, Jango, e instaurou uma ditadura militar no Brasil que durou 21 anos. É precisamente nesse dia que termina, em Lisboa, um seminário luso-brasileiro de Direito com um tema sugestivo: Constituição e Crise – A Constituição no contexto das crises política e económica. Mas é o “quem” desta história que está a levantar várias ondas na relação entre Portugal e o Brasil. É que entre os oradores do seminário estão os principais dirigentes da oposição a Dilma Rousseff – os senadores Aécio Neves e José Serra, o juiz que impediu Lula da Silva de regressar ao Governo Federal, Gilmar Mendes, e o vice de Dilma Rousseff, do PMDB, Michel Temer, que pode nos próximos dias romper a coligação com o Partido dos Trabalhadores (PT) e formar a maioria no Congresso que votará a favor do impeachment (destituição) de a Presidente.

Na próxima semana, entre os dias 29 e 31 de Março, encontram-se na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa todas estas figuras relevantes da actual crise política brasileira. É uma espécie de “Governo brasileiro no exílio”, como lhe chama, ironicamente, uma fonte oficial portuguesa. No Brasil, o jornal Estado de São Paulo, citando fontes do Governo, descreve o encontro de Lisboa como o “prenúncio do arranjo político para derrubar a Presidente”. A data simbólica e o nome dos intervenientes reforçam a convicção da esquerda brasileira de que o impeachment não tem fundamentação jurídica nem política e trata-se de uma tentativa ilegítima de tomada do poder. Por outras palavras, um golpe. O seminário coincide também com o prazo – 29 de Março – que a direcção nacional do PMDB, o partido que faz parte da coligação do governo, deu para tomar uma decisão final sobre se permanece no governo ou se sai. Qualquer que seja a decisão, ela determinará o futuro de Dilma: o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) é o maior partido político brasileiro e se decidir “descolar”, Dilma dificilmente terá os votos necessários no Congresso para sobreviver à destituição.

Os indícios de que o PMDB caminha para uma ruptura com o governo têm sido assunto diário na imprensa brasileira. Não é segredo que figuras do PMDB e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB, oposição) se têm encontrado para discutir um possível governo pós-impeachment, em que Michel Temer, o vice-presidente do Brasil, assumiria a presidência coligado com o PSDB. O senador José Serra, do PSDB, que perdeu as eleições presidenciais para Lula da Silva em 2002 e para Dilma em 2010, e que participará do seminário em Lisboa, deu uma entrevista ao Estado de S. Paulo há dias na qual falou abertamente sobre esse cenário, chegando a detalhar os termos de uma eventual aliança PMDB-PSDB: Temer deveria abdicar de tentar a reeleição em 2018, deixando o caminho livre para um candidato do PSDB.

O gabinete de Michel Temer diz que o vice “deve ir” a Lisboa, para o seminário, mas nota que “tudo pode mudar” dada a turbulência política. “A gente não sabe o que acontece amanhã”, disse a fonte contactada pelo PÚBLICO.

Todos estes contornos já provocaram várias alterações no programa do seminário. A mais importante de todas é a quase certa baixa do Presidente português. Marcelo Rebelo de Sousa aparece nos cartazes como orador, no encerramento do seminário. Mas fonte oficial de Belém esclarece ao PÚBLICO: “O Presidente da República foi convidado para encerrar um colóquio académico na Faculdade de Direito de Lisboa, escola com a qual tem, como é sabido, uma relação particular. Seria a primeira oportunidade após a tomada de posse de lá regressar. No entanto, há um problema de agenda muito complexo. O Presidente não sabe ainda se poderá participar. Mas será de certeza muito difícil…”

O seminário é uma co-organização de dois institutos universitários, um de cada país. A parte portuguesa está a cargo do Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, presidido pelo constitucionalista Jorge de Miranda. Contactado pelo PÚBLICO, o professor remete esclarecimentos sobre a lista de oradores para o seu vice, Carlos Blanco de Morais: “Ele é que foi o organizador.” No entanto, Jorge de Miranda não deixa de ver razões para a polémica e admite que “pode haver algum aproveitamento” deste seminário para objectivos políticos.

Carlos Blanco de Morais, que deixou recentemente de ser consultor da Casa Civil de Cavaco Silva, rejeita a ideia avançada pelo Estadão. “Não é verdade que isto seja algo de conspirativo.” Embora considere que os organizadores do seminário “não têm de se preocupar com sensibilidades alheias”, admite que há entre os convidados “uma maioria de oposicionistas” ao Governo brasileiro liderado pelo PT. E admite que a crise brasileira, que se intensificou nas últimas semanas é mais um ponto de interesse para o seminário (que é fechado, sendo apenas admitidos na assistência convidados da organização). “Por isso mesmo é que o tema é a Constituição e a crise. Os temas têm de ser actuais.”

Também por isso, Blanco de Morais procurou trazer figuras de alto perfil para o encontro. Além de Marcelo, também o ex-primeiro-ministro Pedro Passos Coelho foi anunciado (e ainda está, no site do Instituto Brasiliense de Direito Público, IDP) como orador do seminário. Mas o PÚBLICO apurou que isso também não irá acontecer. A razão para isso acontecer tem duas explicações, distintas. Blanco de Morais garante que Passos não podia estar presente, por “razões de agenda”, dada a proximidade do Congresso do PSD. Já Jorge de Miranda garante que a presença do ex-primeiro-ministro levantou dúvidas quanto à pertinência académica do seu contributo.

Outro caso é o de Miguel Prata Roque, secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros: “O secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros foi convidado na sua qualidade de investigador, uma vez que tem obra publicada, precisamente, sobre o tema do painel em causa. No entanto, tendo em conta compromissos governamentais anteriormente assumidos, não vai participar na iniciativa”, adianta o gabinete do governante.

O Instituto da Faculdade de Direito convidou os oradores portugueses. Do lado brasileiro, foi o IDP que tratou da organização. O IDP é uma escola privada, de que é sócio, e fundador, Gilmar Mendes, o juiz do Supremo Tribunal Brasileiro que suspendeu no passado dia 18 a posse de Lula da Silva como ministro da Casa Civil de Rousseff e manteve a investigação sobre o ex-Presidente nas mãos do juiz Sérgio Moro.  

Contactado pelo PÚBLICO, o juiz do Supremo Brasileiro Gilmar Mendes, que já se encontra em Lisboa, descartou a ideia de o seminário ser uma "reunião de líderes da oposição" ao governo, "senão não teria chamado" figuras próximas do PT para participarem, como é o caso do senador Jorge Viana e de Luís Inácio Adams, ex-procurador geral do Estado nomeado no segundo mandato de Lula. "E certamente não faria uma reunião em Portugal. Faria na Amazónia ou no Pantanal, talvez", disse.

Gilmar Mendes decidiu suspender a nomeação de Lula como ministro na semana passada por considerar que ela configura "uma fraude à Constituição".

Gilmar Mendes também é acusado, no Brasil, de conflito de interesses neste caso. Nomeado para o Supremo Tribunal Federal pelo ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, é tido como uma figura próxima do PSDB. De resto, foi fotografado num almoço privado em Brasília com José Serra e um economista do PSDB na véspera da sua decisão de suspender a nomeação de Lula. À BBC Brasil, o juiz disse: “Eu não estou proibido de conversar com Serra, nem com Aécio [Neves, outro senador do PSDB e rival de Dilma nas últimas presidenciais, de 2014], nem com pessoas do governo”.

Gilmar Mendes “é um juiz que tem a pior característica possível para um juiz: ter todas as suas posições adivinhadas previamente. Ele sempre se coloca contra o governo, sistematicamente”, diz Francisco Bosco, presidente da Funarte, uma fundação de artes ligada ao Ministério da Cultura brasileiro. “A sua isenção está comprometida. Não tem o pudor de disfarçar as relações promíscuas que tem com os líderes da oposição.”

Para Bosco, a reunião em Lisboa de tantas figuras da oposição num momento tão decisivo representa “uma tentativa de legitimação internacional” do impeachment. O seminário também conta com a participação do empresário Paulo Skaf, do PMDB, adversário do PT e apoiante das recentes manifestações populares contra o governo de Dilma Rousseff.

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