Posse de Lula como ministro é suspensa e provoca guerra jurídica

Lula não é ministro. Minutos depois do ex-Presidente tomar posse no Palácio do Planalto, um juiz suspendeu a sua nomeação. Se a sua ida para o governo era uma tentativa de aplacar a crise política no Brasil, o efeito foi o contrário.

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Lula não falou durante a tomada de posse EVARISTO SÁ/AFP
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Lula da Silva e Dilma Rousseff na tomada de posse EVARISTO SÁ/AFP
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Ex-Presidente recebe o carinho dos seus apoiantes EVARISTO SÁ/AFP
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Manifestação pró-Dilma e pró-Lula Ricardo Moraes/Reuters
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Protesto contra o Governo nas imediações do Palácio do Planalto Ricardo Moraes/Reuters

O Brasil parece um país à beira de acabar todos os dias e esta quinta-feira não foi diferente: num minuto, o ex-Presidente Lula da Silva tomou posse como ministro da Casa Civil do governo de Dilma Rousseff, e no outro deixou de o ser, depois de um juiz decidir suspender a sua nomeação. E tudo isto aconteceu ainda de manhã, enquanto manifestantes pró e contra o Governo frente ao Palácio do Planalto, em Brasília, eram separados pelas forças de segurança para evitar confrontos. Houve agressões numa manifestação contra o Governo em São Paulo, que durou todo o dia.

Se a ida de Lula para o Governo era uma tentativa de aplacar a crise política profunda que paralisa o país há mais de um ano, o seu efeito, para já, foi contrário. O clima de hostilidade foi assumido pela Presidente Dilma Rousseff, durante a cerimónia de posse dos seus novos ministros, incluindo Lula. Em vez de uma Dilma titubeante e defensiva, ameaçada pelo impeachment, quem discursou foi uma Dilma dura e combativa.

A Presidente brasileira lançou vários recados à oposição – “A gritaria dos golpistas não me vai tirar do rumo e não vai colocar o nosso povo de joelhos!” – e criticou duramente o juiz da Operação Lava Jato, Sérgio Moro, que na véspera divulgou o conteúdo de uma conversa telefónica entre Lula e Dilma, gravada pela Polícia Federal.

“Os golpes começam assim!”, afirmou Dilma, numa referência às decisões do juiz Moro, dizendo que os seus direitos constitucionais enquanto Presidente da República foram violados. Na noite de quarta-feira, horas depois de a ida de Lula para o governo ter sido oficialmente anunciada, soube-se que o juiz Moro tinha autorizado escutas ao telefone do ex-Presidente e o conteúdo de muitas dessas conversas foi divulgado à imprensa. A que mais se destacou foi um breve diálogo com Dilma, ao início da tarde de quarta-feira, depois do anúncio de que Lula seria ministro, que foi interpretado como uma confirmação de que o ex-Presidente só foi convidado para ser ministro para ter protecção legal e evitar ser julgado por Sérgio Moro, uma vez que ao tornar-se ministro Lula só poderá ser investigado e julgado pelo Supremo Tribunal Federal.

Lula da Silva entre a glória e o ocaso

O país está dividido em duas trincheiras que se digladiam: a narrativa de que Sérgio Moro e o sistema judicial não são imparciais e insistem em perseguir Lula e o seu partido, o PT; e a versão dos que vêem em Lula, Dilma e PT a face da perpetuação no poder a todo o custo e de uma corrupção galopante e endémica que está a ser desmascarada e punida pelo corajoso juiz Moro. O Brasil está em duelo consigo mesmo: cada acção de uma das partes gera uma reacção no outro lado. O Governo anuncia que Lula vai ser ministro? O juiz Moro divulga escutas telefónicas alegadamente comprometedoras. Lula toma posse? Um juiz federal decide suspender a nomeação. O Governo apresenta recurso contra a suspensão.

Minutos após a cerimónia de tomada de posse, o juiz Itagiba Catta Preta Neto, da Jusitça Federal de Brasília, acatou uma providência cautelar que impede Lula de assumir o cargo no Governo e obter imunidade. A medida é provisória até que haja um julgamento do pedido, mas, na prática, ela impede que as investigações em curso na Lava Jato envolvendo Lula saiam das mãos de Moro e sejam conduzidas pelo Supremo Federal. O juiz Itagiba Catta Preta Neto justificou a sua decisão por considerar que “o único e principal” motivo para Dilma nomear Lula ministro foi “modificar a competência de órgãos do poder judicial” e que isso pode configurar um crime de responsabilidade da parte da Presidente.

Mas o enredo adensa-se: o juiz em questão costuma publicar no seu Facebook pessoal textos e imagens contra o Governo e é um apoiante declarado do adversário de Dilma nas últimas eleições, Aécio Neves, do PSDB. Ele publicou uma selfie na manifestação contra a nomeação de Lula na quarta à noite em Brasília. Num post de 7 de Março, escreveu: “Ajude a derrubar Dilma e volte a viajar para Miami e Orlando. Se ela cair, o dólar cai junto.” A sua página de Facebook foi apagada pouco depois de essas publicações começarem a ser partilhadas nas redes sociais e divulgadas pela imprensa.

As críticas à actuação do poder judicial não vêm apenas do governo e do PT, mas também de juristas.

“O juiz está suspeito de julgar esse processo”, diz ao PÚBLICO Lenio Streck, advogado e ex-procurador do Ministério Público. “Ele tinha interesse na causa. Ele escreveu no Facebook que queria o impeachment da Presidente. Parece que ele está brincando de ser juiz. Esqueceu que ser juiz é ter responsabilidade. E respeitar a Constituição. Além disso, não tem base jurídica um juiz de primeiro grau anular um acto da Presidente da República, conforme a Constituição.

O Brasil tem um novo herói: um juiz anti-corrupção

Em comunicado, a secção carioca da Ordem dos Advogados do Brasil condenou a divulgação das escutas telefónicas entre Lula e Dilma pelo juiz Moro, dizendo que é uma medida “típica dos estados policiais”. “A democracia foi reconquistada no país após muita luta, e não pode ser colocada em risco por acções voluntaristas de quem quer que seja. Os fins não justificam os meios”, conclui a mesma nota.

Segundo especialistas Sérgio Moro, um juiz de primeira instância, não tem competência para interceptar as comunicações da Presidente da República nem divulgar publicamente o conteúdo das mesmas, já que o único órgão com essas atribuições é o Supremo Tribunal Federal. O Advogado Geral do Estado e ex-ministro da Justiça de Dilma, José Eduardo Cardozo, disse que as escutas telefónicas a Dilma são “uma questão de segurança nacional”.

Além disso, a conversa entre Lula e Dilma ocorreu duas horas depois de Moro ter ordenado a interrupção das escutas. O juiz deveria tê-la excluído automaticamente do processo, em vez de tê-la divulgado publicamente. “O Brasil corre sério risco institucional. E um dos responsáveis, paradoxalmente, é o próprio poder judicial, que divulga escutas telefónicas feitas de forma ilegal”, diz Lenio Streck. “Qualquer coisa decorrente dessa escuta ilegal será nulo, conforme a tese dos frutos da árvore envenenada, que os tribunais superiores aplicam.”

Através de comunicado, os procuradores da equipa da Lava Jato defenderam a legalidade da acção de Moro. “As conversas telefónicas constituem evidências de obstrução à investigação, numa guerra subterrânea e desleal travada nas sombras, longe dos tribunais”, escrevem.

Na conversa telefónica em causa, Dilma diz que vai enviar a Lula o termo de posse – o documento oficial que o vincula ao cargo de ministro – para ele usar “só em caso de necessidade”. A explicação do Palácio do Planalto é que Lula estava com um problema pessoal – “dona Marisa”, sua mulher, “não está bem”, explicou Dilma – e não sabia se poderia participar na cerimónia de posse de quinta-feira. Tratou-se de uma medida de contingência: se Lula não pudesse vir, haveria um termo de posse já previamente assinado por ele. Lula não falou durante a tomada de posse.

A cerimónia começou agitada: quando Dilma se preparava para discursar, um deputado do Partido Solidariedade gritou “Vergonha!” dentro da sala do Palácio do Planalto. O seu protesto foi prontamente abafado pelos integrantes do governo que assistiam e responderam em coro: “Não vai ter golpe!”

Enquanto a crise política brasileira assume a aparência de uma guerra jurídica – dez outras acções deram entrada no Supremo Tribunal Federal esta quinta-feira para tentar travar a nomeação de Lula –, o processo de impeachment segue o seu curso natural no Congresso. Na quinta-feira à tarde foi eleita a comissão especial de deputados que irá avaliar o processo de destituição da Presidente. Não foi uma sessão tranquila: parlamentares discutiram no plenário, dividido entre gritos de “Fora PT!” de um lado, e “Golpistas!” do outro. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, ele próprio arguido da Operação Lava Jato, já avisou que, para acelerar o processo, convocará os trabalhos da comissão todos os dias da semana, incluindo segundas e sextas-feiras, em que habitualmente não há votações.

 

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