Detenções e conspirações marcam aniversário dos protestos de rua na Venezuela

Governo de Nicolás Maduro endurece a postura contra a oposição na semana em que se cumpriu um ano sobre os violentos protestos de rua que fizeram 43 mortos, 800 feridos e 3500 detidos.

Foto
Mitzy de Ledezma, mulher do presidente da câmara metropolitana de Caracas, mandado prender por Maduro, e Lilian Tintori, mulher de Leopoldo López Carlos Garcia Rawlins/REUTERS

Lilian Tintori subiu a um pequeno palco montado na praça José Martí – a linha invisível que separa os bairros “oficialistas” dos oposicionistas de Caracas – para exigir a libertação imediata de todos os presos políticos, como o seu marido, Leopoldo López, o líder do partido Vontade Popular, no dia em que passou exactamente um ano que ele se entregou à polícia da Venezuela, para exigir a libertação imediata de todos os presos políticos, como o seu marido. “O Presidente Nicolás Maduro nega a sua existência, mas são mais de 100”, afirmou.

Foi no dia 18 de Fevereiro que a loura Lilian, vestida de branco, subiu ao palco nesta praça, palco de confrontos entre manifestantes,m e anunciou a contabilidade que o regime nega. Um dia depois, o número dos oposicionistas presos aumentou para pelo menos 101. Numa operação conduzida pelo Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin), foi detido o presidente da câmara metropolitana de Caracas, Antonio Ledezma, outro conhecido adversário político do Presidente. Como informou o próprio Nicolás Maduro, durante um comício transmitido pela televisão, Ledezma – a quem se referiu como “o vampiro” – "foi capturado e vai ser julgado por delitos cometidos contra a paz do país, a segurança e a Constituição”.

Há um ano, Leopoldo López, um dos mais ferozes críticos de Maduro, aceitou submeter-se à “justiça injusta” da Venezuela, que emitira um mandado para a sua captura, considerando-o o autor moral da violência que tomou conta da capital no rescaldo de um gigantesco protesto anti-governamental. Preso pela Guarda Nacional, e recluso na prisão militar de Ramo Verde, foi acusado dos crimes de conspiração, incitamento à delinquência, intimidação pública, incêndio e dano à propriedade pública, homicídio agravado e terrorismo. No julgamento em curso foram recusados todos os depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa e excluídas as provas submetidas pelo réu.

“Leopoldo sairá da prisão”, garantiu a sua mulher aos apoiantes que mais uma vez se vestiram de branco numa demonstração de solidariedade e paz mas também de censura e repúdio. Só que Lilian, uma antiga desportista e apresentadora de televisão que se tornou porta-voz da oposição ao Governo, não pode prever uma data para a liberdade de Leopoldo. “Sempre que os nossos filhos perguntam quanto tempo mais o pai ficará preso, ele responde que será o tempo que for preciso para a Venezuela voltar a ser um país livre e democrático”, completa.

Conspirações, disse ele
Poucas centenas de pessoas participaram no comício de homenagem marcado para a simbólica praça onde López se entregou à polícia. Antecipando a convocatória de actos de rua para o dia 12 de Fevereiro (o tiro de partida para os grandes protestos de 2014), o Governo aprovou uma lei outorgando às Forças Armadas a responsabilidade pelo “controlo de manifestações públicas”. E dias antes, foram detidos 14 militares, entre os quais um general reformado, acusados de conspirar para depôr o Governo, numa operação alegadamente financiada pelos Estados Unidos.

“Conseguimos travar um perigoso atentado contra a democracia e a estabilidade da nossa pátria”, anunciou Nicolás Maduro, numa declaração televisiva triunfante. Logo de seguida, o presidente da Assembleia Nacional, Diosdado Cabello, apresentou fotografias do armamento apreendido aos alegados conspiradores, que informou, se preparavam para atingir o palácio presidencial com jactos militares, e bombardear o Ministério da Defesa e as instalações da televisão Telesur, ligada ao Governo.

Nesse dia, a alegada participação do autarca de oposição não foi mencionada. Só foram atiradas culpas para Washington: “Quem está por trás deste plano de desestabilização é o Governo dos EUA”, afirmou o Presidente. Mas no fim da semana, o “esquema” de golpe de Estado também já incluía Antonio Ledezma. Uma carta aberta subscrita pelo autarca, Leopoldo López e a deputada María Corina Machado e publicada no diário independente El Nacional seria o sinal que punha em marcha o plano de ataque.

Para o líder da coligação de oposição Mesa da Unidade Democrática, Jesús Torrealba, este tipo de manobras de distracção do regime tornaram-se tão frequentes que já não convencem ninguém. “O Governo inventa histórias sucessivas sobre golpes e conspirações para não ter que falar sobre o colapso do país”, interpretou. “Além da violência, o Governo optou por outro atalho, que é ilegalizar a oposição democrática.”

Corina Machado foi acusada, no final do ano passado, de traição e envolvimento numa conspiração para assassinar o Presidente. Não foi ainda julgada por causa da imunidade parlamentar – que deverá perder em breve, por iniciativa da bancada maioritária do partido do Governo.

O Departamento de Estadoamericano também se referiu ao “padrão” do Governo venezuelano, que encontra sempre um bode expiatório para esconder os seus problemas. Nos seus 15 meses de presidência, Maduro já denunciou uma dúzia de conspirações contra si ou o seu Governo (pelas suas próprias contas, Hugo Chávez foi alvo de 63 tentativas de assassínio desde que chegou ao poder em 1999 até à morte, em 2013). A porta-voz Jen Psaki classificou as alegações do envolvimento dos EUA como “caricatas” e “absurdas”: “Estas acusações sem fundamento só reflectem a falta de seriedade do Governo”, frisou.

A oposição e os analistas concordam que as iniciativas de Maduro na véspera das acções para marcar o aniversário do 12-F tinham um objectivo político óbvio: desmobilizar os que se preparavam para voltar à rua na mesma data dos protestos de 2014, uma explosão de descontentamento popular pelo nível de insegurança e criminalidade, e também pela rápida deterioração das condições económicas que culminaram na crise de abastecimento que tornou a vida quotidiana insuportável.

Prisões sem lei
As manifestações de 12 de Fevereiro de 2014 não só terminaram numa verdadeira batalha campal como acenderam o rastilho para meses de protestos anti-governamentais e de repressão policial – segundo o Observatório Venezuelano de Conflitualidade Social, ao longo de 2014 realizaram-se 9286 marchas, manifestações e protestos em todo o país. Um recorde absoluto e que corresponde a uma média de 26 por dia). O saldo desse período conturbado, que durou até ao Verão: pelo menos 43 mortos, mais de 800 feridos e milhares de detidos.

Dos cerca de 3500 detidos, só cerca de metade foram acusados. De acordo com a procuradoria, 1436 foram libertados sem queixa e 507 ainda estão a ser investigados. A procuradora-geral, Luisa Ortega Díaz, garante que nas cadeias venezuelanas só restam 41 detidos no âmbito dos protestos de 2014 (cujos nomes ou acusações se recusa a divulgar). O Foro Penal Venezuelano alega que são pelo menos 60.

Numa entrevista telefónica à norte-americana CNN, no dia em que cumpriu um ano de reclusão, Leopoldo López apresentou-se como um “sequestrado político”, um “preso do regime de Maduro”, um entre muitos outros – a lista dos que estão “castigados pelas suas palavras e presos pelas suas ideias” não pára de crescer, garantiu. “Os comerciantes, os empresários, os estudantes, os que se manifestam nas filas de supermercado, continuam a encher as cadeias da Venezuela”, observou.

Segundo López, o tratamento imposto aos detidos é desumano: os castigos são frequentes, tal como o isolamento em celas solitárias. “Houve momentos de tortura, momentos muito duros em que somos submetidos a situações vergonhosas, como quando nos atiraram com excrementos”, relatou. Há uma semana, na sequência de um encontro entre a sua mulher e o vice-presidente dos EUA, Joe Biden, um grupo de encapuzados entrou na cela de López, destruiu tudo o que lá havia e mudou-o para uma cela sem água corrente (o incidente foi investigado e confirmado pela Human Rights Watch).

As Nações Unidas, através do comissariado para os direitos humanos e do grupo de trabalho contra as detenções arbitrárias, notificaram Caracas pelo desrespeito dos tratados subscritos pela Venezuela, e acusaram o Executivo da violação dos direitos humanos, cívicos e políticos de Leopoldo López. As garantias de um processo judicial justo e transparente simplesmente não existem: além das acções retaliatórias, as audiências do opositor têm ocorrido à porta fechada e sem a presença da comunicação social.

Como escrevia o diário El País, a Justiça da Venezuela “responde às orientações do Governo em casos de relevância política e económica”, pelo que não é de esperar que Leopoldo López e Antonio Ledezma, ou os administradores da cadeia Farmatodo e dos supermercados Dia a Dia, vejam as suas garantias constitucionais respeitadas – a sua libertação só vai ocorrer quando for conveniente para Maduro, estima o jornal espanhol.

Henrique Capriles, o rival presidencial de Nicolás Maduro e que segundo a imprensa internacional começa a perder protagonismo dentro do movimento de oposição, cada vez mais dividido e radicalizado, foi um dos muitos políticos que participaram numa manifestação espontânea junto da sede da Sebin, em protesto pela detenção de Antonio Ledezma. “Exigimos saber onde ele está e de que o acusam”, declarou, sublinhando que o “desaparecimento” do autarca às mãos dos serviços secretos é inconstitucional.

Para o líder da coligação Mesa de Unidade Nacional, Jesus Torrealba, o “único recurso do governo” face à grave crise económica que o país atravessa “é a violência”. A Venezuela enfrenta uma grave crise económica, que se agudizou desde o início do ano pela queda do preço do petróleo, e que é representada pelas longas filas nos supermercados, onde os bens são cada vez mais escassos e os preços disparam. Ainda na semana passada, o Governo aprovou uma desvalorização de cerca de 70% da moeda.

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