A tensão entre EUA e Rússia e o futuro da ONU

O importante é perceber até quando a ordem internacional continuará a identificar-se com este método obsoleto e falido de “democraticidade”.

O início de um novo processo de eleição do futuro Secretário-Geral da ONU tem revelado (uma vez mais) as lacunas da democracia vigente na ordem internacional, senão vejamos:

1. À luz do artigo 97.º da Carta das Nações Unidas, o Secretariado é nomeado pela Assembleia-Geral mediante recomendação do Conselho de Segurança.

2. Aqui encontramos logo um problema, o da eleição semi-indirecta com nuances de dois sistemas políticos muito criticados pelo Ocidente: o chinês, cujo processo de eleição dos membros dos órgãos políticos das regiões administrativas especiais, como Hong-Kong, ocorre após uma pré-indicação pela elite política chinesa; e o iraniano, no qual os candidatos a todos os órgãos políticos seculares são alvo de triagem prévia pelo Conselho da Vigilância.

3. Acresce ainda que este método de eleição do Secretário-Geral opõe-se ainda ao princípio basilar que norteia a ONU: o da igualdade entre soberanias, previsto no n.º 1, do artigo 2.º da Carta.

4. Ora, se todos os membros da ONU têm a mesma “igualdade soberana” e esta é uma condição fundamental para a prossecução dos objectivos da Organização, com a paz e a segurança internacionais a assumirem maior relevo, como pode justificar-se um sistema que, 70 anos depois, continua a atribuir privilégios à elite vencedora que emergiu da II Guerra Mundial e se sustente todo o sistema com base numa discriminação positiva que agride o princípio da igualdade soberana nos seus aspectos mais básicos?

5. Se à Assembleia-Geral será proposto um candidato (ou candidatos se for esse o caso) para votação sem grande margem de liberdade de escolha dos candidatos pelos 193 membros, parece óbvio que o sistema actual pode ser caracterizado como pouco democrático e pouco representativo da realidade internacional e dos valores consagrados na Carta.

6. Este sistema é também potenciador do desenvolvimento de mecanismos de protecção de interesses dos Estados de elite, na medida em que os membros do Conselho de Segurança só apoiam candidatos que, no mínimo, não agridam as suas agendas. Sem qualquer surpresa, este sistema está concebido para ser bem-sucedido quando as potências caminham no mesmo sentido, mas também para paralisar as instituições quando estas estão diplomaticamente distantes. Foi assim durante a Guerra Fria, em que o Conselho de Segurança foi sucessivas vezes sabotado por EUA e URSS, e ameaça ser assim no presente com novos focos de tensão entre Washington e Moscovo.

7. Exemplo disto é a disputa entre EUA e Rússia para a eleição do Secretário-Geral, num quadro em que Washington prefere Susana Malcorra e Moscovo parece inclinar-se para Irina Bokova. O aparente beneficiário desta contenda tem sido António Guterres, que ameaça afirmar-se como terceira via num contexto em que o futuro líder da ONU poderá ser, não um candidato apoiado por Moscovo ou Washington (já que poderão boicotar-se mutuamente), mas, sim, alguém que não tenha a oposição directa de ambos.

8. O importante é perceber até quando a ordem internacional continuará a identificar-se com este método obsoleto e falido de “democraticidade”. Será necessário aniquilar novamente as instituições, como sucedeu com a Sociedade das Nações, para começar tudo de novo? Rússia e China já deram uma resposta a esta pergunta no passado dia 25 de Junho, quando assinaram uma Declaração Conjunta sobre os Princípios de Direito Internacional, documento este no qual sublinharam a importância de garantir uma universalização verdadeiramente representativa e não necessariamente restrita a elites. O grito foi dado. O futuro dirá se fez eco.

Especialista em Direito e Segurança internacional, ex-Oficial de Informações do SIED

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