Em 2021, mais de quatro milhões de pessoas revelaram que trabalhar em Portugal está longe de ser sinónimo de felicidade. Baixos salários, vínculos precários, carga horária excessiva, gestões autoritárias e estagnação profissional estão entre as principais justificações num mercado de trabalho onde poucos se sentem felizes.
No ano em que os institutos nacionais de estatística de cada país realizaram o inquérito da satisfação em contexto profissional, o mundo laboral confrontava-se ainda com o "choque" da pandemia de covid-19. Mas, para Elísio Estanque, a insatisfação na região portuguesa “já era crescente desde a crise e o período da troika”.
O investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra explica que a pandemia fez com que a insatisfação laboral se tenha “agravado significativamente”, uma vez que “aumentou a precariedade e a instabilidade”.
Por seu lado, Ana Isabel Couto, investigadora do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, considera que há um assunto “imune” à questão pandémica e que é um “claro preditor” de um maior ou menor nível de satisfação: os baixos salários.
Salário médio bruto anual em comparação com o nível de satisfação
Em 2021, Portugal tinha o nível mais baixo de satisfação profissional e era o 10.º país com o salário médio bruto anual mais baixo.
Uma “questão de números”
Mas Portugal não é o país que paga os salários mais baixos da União Europeia. O problema, diz Ricardo Paes Mamede, reside também no poder de compra.
“O país tem salários médios que estão na cauda da Europa e o poder aquisitivo é muito baixo. Há países que têm salários médios inferiores em termos nominais, mas os custos de vida também são menores”, esclarece o economista ao reconhecer os salários como “motivo crucial” para a satisfação profissional.
Salários
Poder de compra recua para os níveis mais baixos desde 2018
O poder de compra dos portugueses recuou para os níveis mais baixos desde 2018, com a inflação a ultrapassar os 2% em janeiro, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE).
Um “mecanismo político” realçado no relatório da Organização Internacional do Trabalho (Trabalho Digno em Portugal 2008-2018: Da crise à recuperação) é o do salário mínimo. Define um “padrão” salarial no país, e Gabriel Leite Mota considera a sua subida como “positiva”. Mas, novamente, há um problema.
Existem “muitas pessoas a receber o salário mínimo ou pouco acima disso”, alerta o professor de Economia no Instituto Superior de Serviço Social do Porto (ISSSP).
Ainda que reconheça a importância dos salários, o presidente da Associação Empresarial de Portugal observa o cenário noutro sentido.
“Importa realçar o salário líquido. Isto é, após dedução da carga fiscal, que, como bem sabemos, é relativamente elevada em Portugal. Isso tem implicações negativas na atracção e retenção de talento e, certamente, reflecte-se no menor grau de satisfação no trabalho”, afirma Luís Miguel Ribeiro.
Salários
56% dos trabalhadores portugueses receberam menos de mil euros
Percentagem sobe para 65% no caso dos jovens com menos de 30 anos segundo o Ministério do Trabalho.
Vínculos laborais, horas a mais e chefias
Mas há mais explicações que podem ajudar a entender esta baixa satisfação dos portugueses perante o trabalho, como os vínculos laborais.
“São determinantes. Se uma empresa oferece vínculos precários, não se pode exigir à pessoa que esteja feliz no seu trabalho. Essa condição reforça o sentimento de insatisfação profissional”, avança a investigadora Ana Isabel Couto.
No entanto, para compreender o que afecta a generalidade dos trabalhadores, o economista Ricardo Paes Mamede vê outros “potenciais factores explicativos”, como o “número muito elevado de horas trabalhadas” e a qualidade da gestão.
“Uma das dimensões que os estudos internacionais referem, no caso português, é o enorme défice de competência de gestão de pessoas. Há uma grande incapacidade de ver as organizações como um conjunto de pessoas, em que o bem-estar deve ser respeitado”, sublinha o professor do ISCTE, que diz ver uma “tendência muito expressiva” de gestão em moldes “autoritários e funcionalistas”.
Qualificados e empregados, mas insatisfeitos
Ao ter em conta os resultados do inquérito, Luís Miguel Ribeiro defende a necessidade de uma “firme aposta” na valorização do capital humano como “activo estratégico das organizações”.
Por outro lado, os dados reunidos pelo Eurostat “não são uma surpresa” para União Geral dos Trabalhadores (UGT). “Temos vindo a alertar para este desencantamento que os trabalhadores portugueses vêm demonstrando e que nos têm reportado”, explica a secretária executiva da central sindical, Vanda Cruz.
E o "desencantamento" é evidente nos profissionais com licenciaturas, mestrados ou doutoramentos. São os que menos expressam estar muito satisfeitos em comparação com outros países. Em mais de um milhão e meio de trabalhadores que seguiram os estudos após o ensino secundário, apenas 367 mil (23,8%) responderam nesse sentido.
É um valor que contrasta em 57,4 pontos percentuais face à Hungria, onde a maioria dos empregados qualificados (81,2%) respondeu estar “muito satisfeito”.
Plano de Recuperação e Resiliência
PRR português falha no apoio à entrada dos jovens no mercado de trabalho
Estudo conclui que as políticas para a próxima geração previstas no PRR estão totalmente focadas na educação e faltam programas que ajudem os jovens a entrar no mercado de trabalho.
11,3% das mulheres estão infelizes no trabalho
Ao analisar quem assinalou estar pouco satisfeito com a condição profissional, as mulheres empregadas colocam Portugal nos lugares cimeiros. O país fica apenas atrás da Bulgária (12,1%).
O investigador Elísio Estanque conta que a desigualdade salarial entre os dois sexos em Portugal “é das maiores da União Europeia” e que a divisão de tarefas no seio familiar "continua a pesar mais na mulher".
Ana Isabel Couto corrobora a ideia ao explicar que “os homens continuam a ganhar mais do que as mulheres” e que isso se agrava quando o nível de escolaridade aumenta.
“Se para o mesmo trabalho não há um retorno financeiro igual, não se pode manifestar grande satisfação”, diz, apontando a gestão da vida profissional, familiar e pessoal como outro factor que pode ajudar a compreender os resultados.
Noutros países, a distribuição de tarefas “é mais efectiva”, diz Gabriel Leite Mota, que identifica a “difícil ascensão profissional” e o “machismo” em contexto laboral como outros potenciais motivos.
Saúde, Educação e Administração Pública
Já nos sectores de actividade, onde a insatisfação foi mais expressiva face aos outros países, Portugal destaca-se em três: saúde e actividades de trabalho social, na educação, e no sector da administração pública, defesa e actividades da Segurança Social.
O porquê de assim ser, explica Ricardo Paes Mamede, remonta quase ao início do século.
“Temos os funcionários públicos com salários estagnados há quase 20 anos e com perdas de poder de compra que chegam a atingir os 20% nesse período. Se olharmos para 2021, junta-se uma pressão brutal sobre serviços subfinanciados para lidar com situações decorrentes da pandemia", relembra.
Muitas empresas, pouca satisfação
Mas a situação também não é animadora para quem criou o seu próprio posto de trabalho e emprega, pelo menos, uma pessoa. É o grupo de profissionais com a percentagem mais elevada de insatisfação perante as outras 29 regiões.
Tal situação, explica o economista, pode estar relacionada com as características do tecido empresarial português, no qual “99,9% das empresas nacionais são de pequena e média dimensão” e destas “cerca de 97% são microempresas”.
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