Museus, visitantes e bandeiras

Não existe igualmente relação directa entre acervos de maior relevância nacional e número de visitantes.

É sabido que tem havido uma verdadeira explosão do turismo estrangeiro em Portugal e muito particularmente em Lisboa. Atingem-se taxas anuais de crescimento superiores a dois dígitos: cerca de 15% no ano passado e cerca de 50% na soma acumulada dos últimos cinco anos. Os museus sentem e suportam em apreciável medida este boom, porque se situam no top das motivações que os estrangeiros apresentam para vir a Portugal. Imagine-se o que seria a zona de Belém, por exemplo, sem monumentos e sem museus para compreender o benefício económico que originam, aliás sem praticamente retorno algum – o que urge corrigir através da abertura de linhas de financiamento do Turismo, dirigidas à requalificação e programação dos museus.

O lado mais visível da movida turística nos museus está no aumento do número de visitantes, que em casos mais favoráveis tem mesmo compensado, e de muito longe, a diminuição de outros segmentos de públicos, penalizados pela “austeridade” (escolas, reformados e nacionais não turistas, em geral). Claro que o número de visitantes está longe de ser o alfa e ómega do bom desempenho dos museus – mas, no final do dia, é esse o indicador que as tutelas, públicas e privadas, primeiro observam e, não raro, mais apreciam.

Os números em Lisboa são elucidativos e curiosos. Observados os museus com mais de 100 mil visitantes (ver quadro junto), verifica-se, no confronto de 2014 com 2105, a ocorrência de três casos de subidas percentuais muito relevantes: Museu dos Coches, Museu Berardo e Museu Arqueológico do Carmo – o primeiro nacional e público, o segundo altamente subvencionado pelo Estado, o terceiro sem qualquer apoio público e gerido pela mais antiga associação patrimonialista portuguesa, com mais de século e meio de existência, a Associação dos Arqueólogos Portugueses. Quanto ao Museu dos Coches, o aumento verificado decorre evidentemente do acréscimo de visibilidade resultante da abertura de novas instalações, em Maio. Mas será preciso deixar passar mais algum tempo para verificar até onde no dito aumento vai a parte da novidade, somada ao resultado da adição entre museu antigo e museu novo. Seja como for, o número atingido, está longe, muito longe, de ser aquele que as estimativas dos seus originais promotores antecipavam – bem menos de metade do mesmo, na verdade, numa conjuntura especialmente favorável pela novidade e intensa exposição mediática (… e não importa o que digam, desde que falem de nós, como bem sabemos do lado negro da história). Quanto ao Museu Berardo, cujos números são muito induzidos pela gratuitidade, o crescimento ficará em parte a dever-se também a “efeitos extraordinários”, no caso a abertura em todos os dias da semana, passando na 2ªFeira a ser o único disponível em toda a zona de Belém (ao que se juntou recentemente o Museu de Marinha). Quanto ao Museu Arqueológico do Carmo, o crescimento é sobretudo devido à dinamização que tem conhecido, articulada, claro, com o carácter encantatório do local, sobretudo para forasteiros. Do lado das descidas, sobrelevam as dos Museus Gulbenkian e Arte Antiga – dois verdadeiros pesos-pesados. Em ambos, argumenta-se que tal decorre de exposições irrepetíveis e de grande sucesso em 2014. Sendo assim, no caso de Arte Antiga pelo menos haveria não diminuição, mas aumento de 9%, tendo como base o crescimento desde 2013, desdobrando-o em dois anos.

Várias ilações podem retirar-se destes números. Primeira, a de que os ganhos são mais expressivos onde existe (talvez pela ordem indicada): turismo, programação atractiva… e maiores facilidades de acesso (no limite, gratuitidade). Segunda, a de que não existe ligação evidente entre número de visitantes e gestão pública ou privada, sendo todavia que esta última, pela maior autonomia e leveza dos procedimentos administrativos, se encontra em situação privilegiada para atingir bons indicadores de desempenho. Terceira e mais relevante: não existe igualmente relação directa entre acervos de maior relevância nacional e número de visitantes.

Este último aspecto deverá conduzira a reflexão que se espera seja desencadeada às claras, sobretudo numa altura em que temos um Governo que promete tratar diferenciadamente os chamados “equipamentos-bandeira”, conferindo-lhes maior autonomia, quem sabe também se mais expressivo financiamento. O que quer dizer essa expressão um tanto rebarbativa de “equipamento-bandeira”, para a qual já se posicionou no terreno o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA)? Serão todos os museus nacionais (como, de resto, todos os arquivos ou bibliotecas nacionais)? No limite oposto, será apenas o MNAA? A primeira opção encontra possivelmente alguma racionalidade. A segunda é de todo insustentável. O actual MNAA, desde logo, resulta da separação operada no século XIX entre “Bellas Artes e Arqueologia”, da qual resultou outro museu de estatuto e âmbito conceptual equivalente, o Museu Etnológico Português, actual Museu Nacional de Arqueologia. E depois convém sobretudo sublinhar, para quem de tal esteja esquecido, que nunca em Portugal verdadeiramente existiu um museu nacional holístico, à maneira de tantos outros, particularmente na Velha Europa. E nenhum possui hoje nem acervo, nem significado simbólico, nem sequer sentido de apropriação colectiva (medido por exemplo no número de visitantes) que justifique tratamento tão singular, dando-lhe a bicicleta que a outros continuaria a faltar, não obstante a todos ser pedido que pedalem.

Arqueólogo

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