Morreu Paul Kantner, dos Jefferson Airplane, e morreram novamente os anos 1960

O guitarrista, fundador da banda de Somebody to love e White rabbit, não sobreviveu a um ataque cardíaco sofrido no início desta semana. Tinha 74 anos.

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Paul Kantner, aqui na celebração dos 40 anos do "Verão do Amor", no Golden Gate Park, São Francisco, nunca abandonou a ética e estética da sua década, a de 1960 REUTERS/Robert Galbraith

Quando Jerry Garcia, guitarrista e fundador dos Grateful Dead, morreu em Agosto de 1995, um hippie veterano americano, longos cabelos grisalhos, fita a ampará-los e t-shirt com cornucópias de cores garridas, lacrimejou para todo o mundo numa reportagem televisiva. “Agora, os anos 1960 acabaram oficialmente”, lamentou. Com a notícia do desaparecimento de Paul Kantner, guitarrista e fundador dos Jefferson Airplane, esta quinta-feira, aos 74 anos, na sequência de um ataque cardíaco sofrido no início da semana, podemos afirmar que os anos 1960 morreram novamente.

Uns anos 1960 específicos, os da cena contracultural do rock psicadélico de São Francisco, da libertação sexual e da marijuana e LSD em busca de novas respostas a velhos problemas existenciais. Os da música eléctrica progressista como arma activista na luta contra o conservadorismo e contra mortes estúpidas em guerras sem sentido. “Jefferson Airplane loves you”, lia-se nas t-shirts e nos pins distribuídos pela banda nascida em 1965. A América “baby boomer”, e o resto do mundo quando se deu conta deles, abraçou-os, seguiu-os, amou-os verdadeiramente.

Paul Lorin Kantner nasceu em São Francisco, a 17 de Março de 1941. Após a morte da mãe, tinha ele oito anos, o pai inscreveu-o num colégio interno, católico e militar, experiência que detestou e que, contaria mais tarde, seria decisiva na formação da sua personalidade. Por um lado, conduziu-o ao gosto pela literatura de ficção-científica, na qual descobriu uma fuga para o ambiente claustrofóbico que o rodeava; por outro, acentuou-lhe o lado rebelde, desdenhoso e desconfiado da autoridade manifestada de forma autoritária. Isso explica o fascínio inicial por Woody Guthrie. Foi por influência do grande trovador que começou a percorrer o circuito de clubes folk de São Francisco. Não é, porém, por esse início de percurso que o seu nome se inscreveu na história do rock’n’roll.

“Os Jefferson Airplane tiveram a sorte e o azar de descobrir os amplificadores Fender Twin Reverb e o LSD na mesma semana na universidade. Foi um grande passo em frente”, cita-o o obituário da Billboard. Kantner fundara a banda com o vocalista Marty Balin em 1965, em São Francisco. À sua volta reuniram-se o guitarrista Jorma Kaukonen, o baixista Jack Casady e, inicialmente, a vocalista Signe Tole Anderson e Alexander “Skip” Spence, guitarrista que pegaria nas baquetas da banda por decisão de Balin: viu num bar o futuro guitarrista e vocalista dos Moby Grape e autor, a solo, de um tão magnífico quanto assombrado disco de culto, Oar, e não teve dúvidas: “Tens cara de baterista.”

O primeiro álbum, Takes Off, editado em 1966, foi o primeiro sinal. Memórias blues e folk electrificadas pelo mundo fervilhante pós-Beatles e animadas pela alvorada da era psicadélica – e pelo menos duas pérolas para atravessar os tempos, It’s no secret e Come up the years. Um ano depois, os Jefferson Airplane, já um fenómeno na cena local, revelavam-se com estrondo globalmente.

Signe Anderson fora substituída por Grace Slick, cuja voz, pose esfíngica nas fotos e forte presença nos concertos se tornariam um dos rostos da década, e Skip Spence cedera o lugar a um verdadeiro baterista, Spencer Dryden. Paul Kantner, guitarrista-ritmo e voz de apoio aos duelos vocais de Slick e Balin, via-se no centro do turbilhão. Surrealistic Pillow, o magnífico álbum editado em 1967, e singles como Somebody to love e White Rabbit, marcha opiácea de uma nova Alice no País das Maravilhas, eram adoptados pela contracultura e, ao mesmo tempo, penetravam o coração da cultura popular. Os Jefferson Airplane eram destaque do Monterey Pop Festival, o primeiro grande festival rock, ao lado de Jimi Hendrix, The Who, The Mamas & The Papas, Otis Redding ou Janis Joplin, e levavam a sua música a milhões de lares americanos no Ed Sullivan Show, o programa de entretenimento mais famoso e influente do seu tempo.

No seu período áureo, estiveram presentes em todos os grandes eventos: inauguraram em 1966 o mítico Fillmore de São Francisco, participaram nos “Love Ins” emblemáticos da época, estiveram em Monterey, em 1967, em Woodstock, em 1969, e em Altamont, festival maldito organizado pelos Rolling Stones no mesmo ano que, com os Hell’s Angles contratados como seguranças, redundou em caos e no assassinato de um espectador a metros do palco onde a banda de Mick Jagger actuava – os Jefferson Airplane viram o seu vocalista, Marty Balin, ser agredido por um dos membros da equipa de segurança responsável pelo esfaqueamento da vítima mortal do festival.

Em três anos, álbuns como After Bathing At Baxter’s, um clássico absoluto da história do rock, feito de música expansiva que passava a acolher no seu seio improvisação jazz, ragas indianas e colagens sonoras resgatadas à vanguarda, Crown of Creation ou Volunteers, álbum-combate de oposição à Guerra do Vietname, escalaram as tabelas de vendas, levaram os Airplane à capa da prestigiada e prestigiante Life Magazine e, sem que tal beliscasse o estatuto, mantiveram a banda como ícone do underground.

Kantner, cuja guitarra ritmo assegurava a fluidez do som, cuja voz amparava com mestria o protagonismo das de Balin e Slick e cujos talentos de compositor surgiam plasmados nos créditos de canções como a delicada Today, as explosivas Wild thyme e The ballad of you and me and Pooneil, os singles Crown of creation ou Volunteers, seria responsável, com Grace Slick, pela transformação da banda. Em 1970, num período em que os Airplane pareciam paralisados por conflitos internos, editou com a vocalista Blow Against the Empire, creditado a Paul Kantner and Jefferson Starship. Em 1974, com Kantner como principal instigador, a nova banda estreava-se discograficamente com Dragon Fly.

Paul Kantner lideraria a banda, cujo sucesso comercial, mas não o impacto cultural e a relevância musical, ultrapassou o dos Jefferson Airplane, até 1984. Saiu quatro anos depois de sofrer uma hemorragia cerebral da qual recuperaria sem sequelas e ainda a tempo de escapar a ver-se envolvido em memórias musicais pouco abonatórias para com o passado da banda que fundara como We built this city ou Nothing’s gonna stop us now, êxitos da década 1980 cantados por Grace Slick e assinados unicamente Starship.

O nome Jefferson Airplane regressaria brevemente, novamente por impulso de Paul Kantner, em 1989, com a edição de um álbum homónimo. Em 1992, o guitarrista reuniu uns Jefferson Stairship – The Next Generation, o que lhe valeu um processo em tribunal por parte dos antigos membros da banda, acusado de uso indevido do nome. Não se deteve. Foi com os Jefferson Stairship que continuou a tocar até à sua morte.

Viveu em São Francisco, a cidade em que nasceu, até ao fim dos seus dias. O San Francisco Gate citava-o esta sexta-feira. “Alguém disse certo dia ‘se quiseres enlouquecer, vai a São Francisco. Ninguém reparará’.” Considerando o legado que deixa Kantner, só podemos agradecer a loucura.

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