Semear a dúvida e pôr tudo no mesmo saco

A medicina baseada na ciência, com todas as suas limitações, tem desenvolvido processos rigorosos que permitem saber se um tratamento funciona ou não. E isso faz toda a diferença.

No mesmo dia em que foi publicado um artigo meu no PÚBLICO em que associo as terapias alternativas à moda da não vacinação, a Associação Portuguesa dos Profissionais de Acupunctura emitiu um comunicado dizendo que “não só apoiamos como aplaudimos a vacinação e o Plano Nacional de Vacinas!”. Ficaria encantado se as associações de naturopatas, homeopatas e afins viessem a público afirmar sem hesitações que recomendam a vacinação. Infelizmente a esperança não é muita.

A generalidade dos terapeutas alternativos é, na melhor das hipóteses, ambígua. Um exemplo são as declarações do naturopata João Beles ao Jornal de Notícias, segundo o qual “a vacinação não é desnecessária, assegura uma protecção contra várias doenças”, para logo acrescentar que “existem efeitos adversos que podem levar os pais a terem receio”. Isto é semear a dúvida, colocando a questão no mesmo ponto inconclusivo de uma mãe ou pai “de mente aberta” com ligação à Internet. Esta posição ambígua serve o mercado que procura “médicos” complacentes com a decisão de não vacinar. No entanto, os riscos e benefícios das vacinas estão bem avaliados e a vantagem da vacinação face aos riscos das doenças é clara e avassaladora.

Um relatório do Centro Europeu para a Prevenção e Controlo de Doenças de 2012 discute a origem de vários surtos de sarampo, papeira e rubéola na Europa e associa-os a grupos com baixa cobertura vacinal. Entre estes estão emigrantes e comunidades nómadas. Também refere grupos que não vacinam por questões religiosas. Outro caso é o das comunidades antroposóficas, inspiradas na filosofia Waldorf, que têm creches, escolas e centros de saúde próprios, assim como médicos e tratamentos Waldorf, e encaram as doenças da infância como parte do desenvolvimento espiritual das crianças.

Também os utilizadores de medicinas alternativas têm taxas de vacinação mais baixas do que o resto da população. É mencionado no relatório o caso da homeopatia, que oferece “vacinas homeopáticas”, que nenhuma protecção conferem. Os profissionais de saúde também são referidos, pois podem-se tornar focos de infecção. Ou seja: as terapias alternativas estão de facto associadas a baixas taxas de vacinação.

Mais à frente no comunicado dos profissionais da acupunctura é reconhecida a existência de “alguns, poucos, profissionais das terapias não convencionais que são contra certas vacinas”, acrescentando terem “igualmente conhecimento de médicos e outros profissionais de saúde convencional que assumem publicamente ser contra as vacinas”. Esta é uma outra estratégia das terapias alternativas: meter tudo no mesmo saco. Reclamam igual estatuto ao da medicina convencional, ainda que para isso necessitem de regimes de excepção. Os remédios homeopáticos são um bom exemplo disso, uma vez que, para serem introduzidos no mercado, não precisam de apresentar as extensas provas da sua eficácia e segurança, exigidos aos restantes medicamentos, sendo aprovados através de um regime especial, que apenas pede que sejam inócuos.

Também Paulo Sargento, director da Escola Superior de Saúde Ribeiro Sanches (que fez pedidos de acreditação de licenciaturas em terapias alternativas e oferece uma pós-graduação em “Mindfulness para profissionais de saúde”) me dirige uma resposta na qual afirma que “conselhos antivacinação têm sido dados, quer pela medicina convencional, quer pela medicina não convencional”, insistindo em meter tudo no mesmo saco. Numa outra resposta, Rui Devesa Ramos vai ainda mais longe no relativismo obscurantista, ao considerar que “a ciência nunca será mais do que uma crença civilizacional”, a par com muitas outras, tal como a religião. Para Ramos todo o conhecimento é igual, desde que haja pessoas que nele acreditem. Diz que “o que faz com que a ciência ‘funcione’ deriva determinantemente (sic) da crença que temos nela”. Conclui-se que, se amanhã rodar a chave de ignição e o motor do carro não trabalhar, é apenas porque ele não acredita que a bateria esteja carregada... Não, nem tudo é igual. A medicina baseada na ciência, com todas as suas limitações, tem desenvolvido processos rigorosos que permitem saber se um tratamento funciona ou não. E isso faz toda a diferença.

Numa época de Trump, pós-verdade, a ciência está ameaçada de muitas maneiras e esta é mais uma. Não podemos dar-nos ao luxo de ser contemplativos com os factos alternativos das terapias homónimas.

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