“É imoral que a União Europeia exporte pesticidas que são proibidos aqui”

Compromisso europeu de banir exportação de pesticidas proibidos nunca saiu do papel, tendo sido bloqueado pela indústria química, diz relatório do Corporate Europe Observatory.

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O relatório da Corporate Europe Observatory critica a produção e a exportação de produtos químicos agrícolas que a União Europeia considera nocivos para os ecossistemas Nemanja Otic/Getty Images
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A Comissão Europeia propôs o fim da exportação de produtos químicos proibidos na União Europeia, mas, de acordo com um relatório da Corporate Europe Observatory, esta medida tem sido bloqueada pelo sector industrial. “É imoral que a União Europeia exporte pesticidas proibidos aqui [nos Estados-membros]”, diz ao PÚBLICO João Camargo, co-autor do documento, activista e investigador da organização com sede em Bruxelas.

“Estes produtos são proibidos na União Europeia devido ao seu impacto negativo nos seres humanos e nos ecossistemas. Mas continuam a ser vendidos em muitos outros países, sem ter em conta os seus efeitos noutros territórios. Não só isso, mas esses mesmos produtos podem acabar por regressar para a União Europeia, como um bumerangue, em importações de alimentos que contêm resíduos desses pesticidas proibidos”, refere o relatório intitulado Deadly Exports (que significa, numa tradução livre, “exportações mortais”).

O documento tem como objectivo desconstruir argumentos da indústria agro-química para justificar a exportação de produtos que, no espaço europeu, estão banidos precisamente por serem nocivos à saúde humana, animal e ambiental. Destas narrativas “falaciosas”, a mais dominante é, para João Camargo, a ideia de que, se a União Europeia interromper este “comércio tóxico”, isto teria como consequência o desemprego e a desaceleração da economia.

Herbicidas como o triasulfuron e a atrazina, por exemplo, que integram a lista negrada Agência Europeia de Produtos Químicos (ECHA, na sigla inglesa), continuaram a ser exportados para países da África e do Médio Oriente. O relatório opõe-se à ideia de que proibir este tipo de exportação só faria com que economias menos industrializadas acabassem por ir comprar os mesmos produtos a outras nações, ou à de que a supressão da exportação prejudicaria os agricultores estrangeiros e aumentaria o risco de contrafacção.

“Não há nenhum argumento válido para justificar estas ideias – nem técnico e muito menos moral. Aliás, é repulsivo o esforço do sector de travar esta proposta. A maior parte das pessoas em Portugal nem sabe que isto existe, que a União Europeia produz produtos que estão proibidos aqui, mas que os exporta para outros países. Avançar com o conhecimento desta realidade já seria bastante importante para os portugueses”, afirma João Camargo ao PÚBLICO, numa videochamada.

O co-autor do relatório refere que a União Europeia já reconheceu, de algum modo, que é “completamente imoral” vender para terceiros aquilo que se reconhece ser letal para consumo interno. Apesar disso, não só nenhuma proposta chegou a ser apresentada para pôr um ponto final nesta prática, como até hoje não foram apresentados os resultados da consulta pública que terminou dia 31 de Julho de 2023.

“Foi a própria comissão que apresentou a proposta em 2020. Mas, de uma maneira oportunista, a própria Comissão Europeia, liderada por Ursula von der Leyen, enterrou este e outros temas quando lhe foi de conveniência política enterrar”, diz João Camargo, lembrando que esta matéria importante passará agora para as mãos de quem, após as eleições de 9 de Junho, estiver à frente da Comissão Europeia.

Quando se refere a “outros temas”, Camargo tem em mente, por exemplo, o facto de Bruxelas ter desistido da proposta do uso sustentável dos pesticidas, em Fevereiro deste ano, cedendo assim à pressão dos agricultores e esvaziando aquela que era a proposta inicial conhecida por “Do Prado ao Prato”.

Efeito bumerangue

O relatório também sublinha o efeito bumerangue que este “comércio tóxico” que a União Europeia viabiliza pode ter nas populações dos Estados-membros. Se, em teoria, um produto fitoquímico exportado para países com uma legislação mais flexível não é um problema europeu, por outro, João Camargo recorda que podemos estar a ser vítimas de um efeito bumerangue uma vez que podemos ingerir alimentos cultivados nesses países.

“Portugal não tem indústrias muito importantes que estejam envolvidas nesse sector [indústria química]. Nesse caso em concreto, será mais a Alemanha, a Bélgica, os Países Baixos, a França e a Itália. Não obstante, nós sofremos o impacto de produtos que nós importamos, que são expostos a estes produtos tóxicos que nós exportamos. Há aqui um efeito bumerangue: como nós continuamos a mandar para fora os produtos ilegais, eles depois vêm de volta na comida – na fruta, principalmente, e nós comemo-la”, explica João Camargo.

Fundada em 1997, a Corporate Europe Observatory é uma organização sem fins lucrativos que tem como missão denunciar as consequências indesejáveis do lobbying de gigantes empresariais junto das instituições europeias em Bruxelas e Estrasburgo.

“Enquanto estas empresas e os seus lobbyistas tiverem acesso privilegiado aos membros dos governos e às instituições europeias, elas continuarão a colocar o lucro à frente da saúde e da preservação da biodiversidade”, afirma o co-autor Hans van Scharen, investigador da Corporate Europe Observatory, na rede social X (antigo Twitter).