Rede russa de desinformação terá pago a políticos europeus para influenciar eleições europeias

Rede descoberta pelas “secretas” polacas e checas estará por trás do site Voice of Europe. Alega-se que eurodeputados de países como Bélgica e Alemanha foram pagos para difundir narrativas pró-Rússia.

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Rede tinha o objectivo de potenciar a difusão de narrativas pró-russas na Europa JULIEN WARNAND
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Os serviços secretos da Polónia e da República Checa descobriram, no final de Março, uma rede russa que, alegadamente, tinha o objectivo de influenciar os resultados das eleições europeias, que se realizam entre 6 e 9 de Junho. A mesma rede, de acordo com a imprensa internacional, era responsável pelo funcionamento do site de notícias Voice of Europe, conhecido por “dar voz a políticos eurocéticos e espalhar narrativas pró-Rússia”, como explicou ao PÚBLICO Jan Fridrichovsky, editor-chefe da Demagog.cz, uma plataforma de fact-checking checa.

Além da gestão do site, a mesma equipa terá “alegadamente (de acordo com os media checos que cobriram a história —​ Dení K, Seznam Zprávy, entre outros) pago a políticos europeus para espalharem narrativas pró-russas e organizado conferências e eventos para apoiar certos políticos da direita radical”.

Petr Bystron, candidato pelo partido populista alemão AfD às europeias é, de acordo com o jornal checo Deník N e a revista alemã Der Spiegel, um dos políticos que receberam dinheiro do Voice of Europe. Bystron, porém, negou todas as acusações à Reuters: “Nunca recebi quaisquer pagamentos em dinheiro ou criptomoedas de um funcionário do Voice of Europe (ou qualquer russo).”

O primeiro-ministro belga, Alexander de Croo, e o primeiro-ministro checo, Peter Fiala, confirmaram numa carta enviada ao Conselho Europeu (divulgada no X) que os serviços secretos da Bélgica tinham descoberto “uma rede de interferência pró-Rússia” a actuar no país. Os objectivos da rede passam por “promover a cooperação entre políticos pró-Rússia dentro do Parlamento Europeu” e “ajudar a eleger mais candidatos pró-Rússia no Parlamento Europeu”.

“É claro que o regime russo está a tentar influenciar as eleições europeias vindouras e fortalecer a narrativa pro-Rússia no novo Parlamento Europeu”, lê-se na carta.

Segundo o ministro francês Jean-Noël Barrot, em França, a propaganda russa também se tem difundido. Ao jornal regional Ouest-France, o ministro disse que "não há uma semana em que a França não seja alvo de manobras coordenadas e deliberadas com o objectivo de prejudicar o debate público e interferir na campanha às eleições europeias", cita o The Guardian.

Governo checo sancionou Voice of Europe e Viktor Medvedchuk

As autoridades checas deitaram mesmo abaixo o Voice of Europe, e o Governo anunciou que o site seria colocado numa lista de sanções.

Jan Fridrichovsky explica que ainda não se conhece por completo a ligação entre o site de notícias e os alegados pagamentos a políticos europeus: “O SIS [serviços secretos da República Checa] não deu muitos detalhes sobre isto. No entanto, crê-se que a gestão do site e os pagamentos ao políticos foram duas partes da operação de influência levadas a cabo pelas mesmas pessoas.”

Depois de uns dias indisponível, o Voice of Europe já voltou a estar disponível online. O site, que funcionava a partir da República Checa antes de ser bloqueado, estará alojado agora no Cazaquistão, de acordo com o Euroactiv.

Além do Voice of Europe, o Governo checo também incluiu os nomes de Viktor Medvedchuk e Artem Marchevsky na lista de sanções.

O primeiro é um oligarca ucraniano pró-Kremlin, membro do círculo íntimo de Putin (o Presidente russo é, inclusivamente, padrinho da filha de Medvedchuk). Em 2022, foi exilado para a Rússia em troca de prisioneiros de guerra ucranianos e perdeu a cidadania ucraniana. Medvedchuk era o líder do partido Plataforma de Oposição — For Life, um dos partidos suspensos na Ucrânia.

O israelita Artem Marchevskyi, segundo a Reuters, liderou o Voice of Europe sob a orientação de Medvedchuk.

De acordo com o Le Monde, também há um homem polaco acusado de espiar para os serviços secretos russos e de subornar eurodeputados no sentido de aumentar a influência russa na Europa.

Como se desenvolve uma campanha destas?

“Estas campanhas de desinformação são deveras complexas e sofisticadas”, começa por apontar Joana de Deus Pereira, investigadora do Royal United Services Institute (RUSI), especialista em Contraterrorismo e em Prevenção e combate ao extremismo violento. “O planeamento e execução dessas campanhas não são actos isolados ou aleatórios; seguem uma estratégia meticulosamente elaborada que visa maximizar o impacto e a penetração das mensagens de desinformação. Isso inclui a identificação de grupos específicos dentro da sociedade que podem ser mais susceptíveis ou receptivos a certas narrativas”, explicou ao PÚBLICO.

Na opinião da especialista portuguesa, o “principal risco” de uma campanha deste tipo não se limita à “erosão da confiança nas instituições democráticas e no processo eleitoral”. A longo prazo, os sucessivos ataques de desinformação podem comprometer mesmo a coesão da UE. “Isto é mais ou menos como fazer um furinho num colchão de ar. O colchão não rebenta mas vai abatendo com o tempo”, compara.

Mesmo antes das investigações sobre o Voice of Europe, Josep Borrell, o alto- representante para a Política Externa e Segurança da União Europeia, já se tinha mostrado preocupado com o fenómeno. “A desinformação e os órgãos de propaganda são hoje uma arma do Kremlin”, afirmou em Fevereiro.

“A democracia é um sistema que se baseia na informação que as pessoas têm, porque elas fazem as suas escolhas — as escolhas políticas —​ de acordo com a sua própria percepção e informação que recebem sobre o que se passa no resto do mundo”, resumiu.

Joana de Deus Pereira defende que a protecção das instituições depende de uma abordagem robusta e em várias frentes. Terá de incluir “os intervenientes com responsabilidade nos critérios de transparência”, a responsabilização das redes sociais e uma maior “vigilância sobre as transacções financeiras dentro dos círculos políticos para prevenir financiamentos ocultos/indesejáveis”. Também é urgente investir em “medidas de cibersegurança de salvaguarda contra interferências digitais”.

Além da Rússia, a China

É possível que, num futuro mais ou menos distante, não seja só a Rússia a tentar interferir nos processos democráticos europeus. Já em 2022, Ivana Karásková, do Observatório dos Media Digitais Central Europeu (CEDMO, na sigla em inglês), alertou para a necessidade de estar atento à China, no documento Confluence between Russian and Chinese information operations in European information space (“Confluência entre as operações de informação russas e chinesas no espaço informativo europeu”).

“Com as relações entre Estados Unidos e China e entre UE e China a deteriorar-se, é provável que a China intensifique, no futuro, campanhas com objectivo de perturbar o que consideram ser a dominância ocidental das narrativas tradicionais”, lê-se no documento que alerta para o facto de, “até agora, a Europa ter tomado pouca atenção às operações de informação chinesas no espaço informativo europeu”.

A sete meses das eleições nos EUA, já se vê no país um exemplo do que pode acontecer no futuro, no continente europeu. Segundo o New York Times, já circulam online perfis que se fazem passar por apoiantes de Trump, mas que na verdade terão sido criados por contas chinesas. O objectivo é difundir teorias da conspiração, criar divisões na sociedade norte-americana e prejudicar a opinião pública sobre o desempenho de Joe Biden.

A operação conhecida como Spamouflage tinha sido identificada em 2019 pela empresa Graphika e o Instituto para o Diálogo Estratégico quando fora usada contra as manifestações de oposição à interferência da China na governação de Hong Kong. Nos Estados Unidos, a campanha tem evoluído e é cada vez mais semelhante à campanha de interferência russa que se verificou nas presidenciais norte-americanas de 2016.

Para Joana de Deus Pereira, o que se tem visto lá fora “reforça a necessidade de uma vigilância contínua e de uma resposta proactiva por parte das instituições europeias, para se antecipar e mitigar potenciais tentativas de influência”.

*Com Ivo Neto

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