A ciência e a inovação vistas como ideologia

Quando vem a dita esquerda emerge a ciência. Quando vem a dita direita, parece olhar tais temáticas na sua versão minimalista. Mas que erro.

Tenho uma grande ligação ao pensamento original de Merton, pioneiro da sociologia da ciência, que num célebre artigo afirmou que a ciência não deve ser sujeita, entre outras pressões, à da política. Entre nós, parece que a ciência e a inovação se transformaram numa ideologia.

Quando vem a dita esquerda emerge a ciência e, obrigada a que seja de forma mais discreta, mas igualmente eficaz, a inovação. Quando vem a dita direita, parece olhar tais temáticas, de novo na sua versão minimalista, da seguinte forma: “A ciência e a inovação são coisas de países ricos. Portugal é um país pobre, não deve meter-se nessas aventuras.” Assim, “poupa-se” um ministério, juntando-se ao Ministério da Educação, o ensino superior, a ciência e a inovação. E, no entanto, a ciência e a inovação são cruciais para o desenvolvimento económico e social.

Mas que erro. Não é uma questão de elitismo, os objectivos dos dois sectores, o da ciência e inovação e o da educação, são diferentes. Também as dimensões: antes do 25 de Abril, o número de escolas e estudantes do básico e secundário era diminuto, tendo aumentado muitíssimo. O número de universidades e politécnicos era pequeno, como o número de estudantes. Havia pouca investigação científica, feita essencialmente em laboratórios do Estado, e era diminuto o número de investigadores.

A investigação e desenvolvimento (I&D) é hoje maioritariamente feita no ensino superior e, se bem que com atraso, há muito foi criada a área de interface que proporciona a ligação e a drenagem do conhecimento obtido nos centros de investigação seja à administração pública, à cultura ou às empresas. O ensino superior tem hoje três áreas, a do ensino, a da investigação e a da interface.

De notar ainda, confesso que me irrita ter de voltar a relembrar isto, quando em 1967 foi criada a Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), ela foi colocada na Presidência do Conselho, pois já havia a visão de que tinha de haver investigação científica em todos os sectores, laboratórios do Estado, ensino superior, instituições privadas sem fins lucrativos e empresas. Agora não é esta a perspectiva. Mistério…

A I&D veio mostrar todo o seu potencial na covid-19. Temos de lembrar, por exemplo, como o Instituto de Biologia e Engenharia Tecnológica (IBET) colaborou com a empresa americana ModeRNA na produção de vacinas com ARN-mensageiro. Ou como foi incutido conhecimento nos sectores tradicionais.

E será que a questão de articular o ensino com as empresas terá em conta estas no seu estádio actual ou também do futuro? A propósito, onde está o digital? E como se entrará em conta com a inteligência artificial? Ou como iremos ter jovens preocupados e sabedores preparados para a cibersegurança? Mistérios…

Outras questões que me intrigam. Há muitos anos, quando ainda trabalhava na JNICT, um sueco ligado à política pública de ciência e tecnologia que por lá passou, mas que já se tinha apercebido dos hábitos portugueses em matéria de legislação, disse-me que na Suécia a legislação se punha primeiro em prática experimentalmente, era avaliada uns anos depois e então publicado o diploma. E que em Portugal se optava por legislar e corrigir continuadamente, sem se avaliar.

Dado que já se sabia que prática diferente tinha de ser publicada logo como nova legislação, saiu o diploma do Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES). Sendo muito e bem estudado foi, no entanto, logo acentuado que, num certo prazo, deveria ser avaliado. Não só não foi, como tem sido contestado, curiosamente, pelo que não é e com o desaproveitamento das oportunidades que abre.

O RJIES procurou, entre outros objectivos, tentar resolver o problema alargado do financiamento plurianual de projectos de investigação, cuja duração é, em geral, de mais de um ano. As regras da administração pública obrigaram, durante muito tempo, a que o financiamento atribuído a um projecto de investigação, cujo montante para um ano que não tivesse sido gasto não pudesse ser utilizado depois. Era visto como um saldo e este teria obrigatoriamente de ser devolvido ao Estado, que o usaria como entendesse. A gestão mais autónoma dos financiamentos que o regime fundacional proporciona é muito importante.

Outro objectivo: ligar mais as universidades ao exterior. Aqui entrou a ideia de Conselho Geral. De facto, poderia ser eleito quem se entendesse, por exemplo, uma mulher ou homem de cultura ou um sindicalista. Sampaio da Nóvoa, quando reitor da Universidade de Lisboa, convidou Henrique Granadeiro e depois, felizmente, Leonor Beleza. A Universidade de Manchester teve até há pouco como Chanceler, o grande poeta britânico Lemn Sissay.

Há várias legislaturas ou semi-legislaturas que o RJIES está em debate, tal como também o debate continuado, sem pelos vistos solução à vista, da revisão das carreiras de investigação científica, docentes do ensino superior e, agora também, da gestão de ciência e tecnologia. E, no entanto, estas são questões extremamente importantes dos recursos humanos, que são a base de produção, transmissão e transformação do conhecimento.

Confesso que já não tenho grande esperança. Será que é desta vez? Veremos.

Declaração de interesses: a autora, dando grande importância à alternância partidária na democracia representativa parlamentar, foi militante do PSD entre 2001 e 2023. Sente-se melhor por não estar já ligada ao PSD, pois ficaria agora muito chateada pela decisão de juntar num único ministério a ciência, a inovação e a educação.

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