Fantasmas e traidores

O partido da extrema-direita tem uma enorme vantagem: pode fazer e dizer o que quiser, que ninguém vai ter a percepção da inconsistência ou imoralidade.

Foto
Megafone P3 DANIEL ROCHA
Ouça este artigo
00:00
04:08

Sabes o que é um fantasma? Na gíria filosófica trata-se de uma espécie de viés cognitivo em esteróides. Abigail Thorn, no seu canal Philosophy Tube, explica: quando somos aprisionados por um fantasma, condicionamos toda a nossa maneira de olhar para o mundo e para nós próprios de acordo com uma crença, mesmo que aquilo em que acreditamos não tenha nenhuma ligação à realidade. Se eu oiço constantemente que os imigrantes são “subsidiodependentes” ou “violadores”, então estes imigrantes são parasitas na minha sociedade e não há dados objectivos que rebatam os meus sentimentos. Comprometo-nos com a ignorância e, consequentemente, isto influencia as nossas outras crenças e comportamentos.

Ninguém está isento destes fantasmas. Há tipicamente realidades de que nos escudamos para não termos de mudar a nossa vida (e.g., no nosso consumo), mas há casos em que os fantasmas dominam uma pessoa ou grupo de pessoas de tal forma, que já se torna muito difícil de entrar em diálogo e de confrontar com a realidade. Este conceito explica muito bem o crescimento dos partidos e líderes políticos anti-sistema um pouco por todo o mundo.

Por cá, o caso mais recente é o do partido Chega. Os fantasmas mais comuns nos eleitores e membros do Chega são conhecidos: entre a mania da perseguição (veja-se a história dos rateres da mota do cortejo do Chega durante a campanha) e as diversas teorias da conspiração que o partido promove, da teoria da substituição às acusações anti-semitas do tipo “George Soros”. A ideia de que um arguido deve ter os seus bens confiscados ilustra na perfeição o fantasma mais poderoso do Chega: a ideia de que “são todos corruptos”, independentemente do julgamento. E não há muito tempo Ventura dizia que se devia cortar às mãos aos “ladrões”.

Claro que, para citar a expressão evangélica, seria preciso que o membro ou apoiante do Chega tirasse a trave do olho. Afinal, André Ventura nunca explicou, nem vai explicar, grande parte do financiamento do Chega; vários dos seus novos deputados têm milhares de euros em dívidas; e é conhecida a relação de Ventura com vários grandes empresários que o financiam. Ora, para quem enche a boca de palavras pias contra a corrupção este não é um quadro muito agradável. E para este tipo de situações, Ventura tem sempre uma palavra na manga: hipocrisia.

Mas porque é que isto não afecta a popularidade do Chega? De novo, por causa dos fantasmas. Para quem apoia ou faz parte do Chega, nada disto interessa; na verdade, nada disto é bem “real”. Nem sequer interessa se os dirigentes do Chega não conseguem explicar como pagam aquilo que propõem, ou as suas inúmeras contradições insanáveis. Afinal, o que conta é o descontentamento das pessoas com a classe governativa e o que ganha pontos são as “boas” intenções de quem fala mais alto.

Quem está de tal modo armadilhado pelos seus fantasmas não vai conseguir reconhecer a realidade. Portanto o partido da extrema-direita tem uma enorme vantagem porque pode fazer e dizer o que quiser, que ninguém vai ter a percepção da inconsistência ou imoralidade. É semelhante ao caso Trump, que poderia entrar na 5.ª Avenida a disparar uma arma, que isso não lhe tiraria votos – pelo contrário. Por cá, a questão é mais a boçalidade (como as agressões entre membros do próprio Chega dentro do parlamento), o pequeno delito (e.g., as injúrias à família Coxi e a Francisco Louçã, e as compras duvidosas de Tânger Corrêa) e, muito claramente, a inconsistência política – tendo isto atingindo a sua máxima expressão no dia em que Ventura, num só dia, absteve-se, votou contra e a favor do Orçamento de Estado.

Mas por causa dos ditos fantasmas, Ventura tem toda a margem para crescer. Até ao dia, talvez, em que não consiga ter mão nos seus 50 deputados, tal como aconteceu com os seus muitos vereadores e deputados municipais pelo país fora. Agora o Chega corre o risco, mais do que nunca, de ter uma mão cheia de desfiliações e deputados não-inscritos. A avaliar pelo historial de pouca lealdade dos seus novos deputados, a grande maioria ex-deputados do PSD, CDS e até do PAN, o prognóstico não é favorável. Mais ainda: estes deputados acumulam acusações de terem cometido crimes contra o seu ex-partido (caso Cristina Rodrigues) e ideias frontalmente opostas ao actual partido (caso João Tilly, anti-Zelensky e anti-Ucrânia). Estaremos cá para ver como lhes correrá a vida.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários