Irlandeses votam novo conceito de “família” e fim das referências à mulher “em casa” na Constituição

República da Irlanda realiza na sexta-feira um referendo para tentar alterar dois artigos da Constituição de 1937, uma das mais conservadoras da Europa Ocidental.

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Cartazes e panfletos em Dublin contra e a favor das perguntas que vão a referendo nesta sexta-feira Reuters/Clodagh Kilcoyne
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A República da Irlanda, um dos países da Europa Ocidental mais influenciados pela tradição católica e por uma visão conservadora dos costumes, continua a trilhar um caminho de liberalização crescente da sua sociedade e, particularmente, da sua Constituição. Esta sexta-feira, Dia Internacional da Mulher, os irlandeses são chamados às urnas para decidirem o futuro das propostas de eliminação de referências ao papel da mulher e ao conceito de família na sua Lei Fundamental.

O Governo de coligação do Fine Gael, Fianna Fáil (ambos de direita) e Partido Verde (ecologistas, centro-esquerda) propõe duas emendas à Constituição de 1937, que, se forem aprovadas, tal como indicam as sondagens, vão acabar com disposições constitucionais descritas pelo primeiro-ministro, Leo Varadkar, como “muito antiquadas e muito sexistas”.

O Irlanda legalizou em 2015 o casamento entre pessoas do mesmo sexo e descriminalizou o aborto em 2018. Mas a Constituição irlandesa ainda tem inúmeras disposições vistas como desajustadas do século XXI – o crime de “blasfémia”, por exemplo, também só foi eliminado em 2018.

A chamada “Emenda dos Cuidados” pretende acabar com as cláusulas 1 e 2 do número 2 do artigo 41.º. A primeira diz que “o Estado reconhece que, através da sua vida em casa, a mulher dá ao Estado um apoio sem o qual o bem-comum não pode ser alcançado”; e a segunda diz que “o Estado deve esforçar-se por garantir que as mães não são obrigadas, por necessidade económica, a arranjar emprego, negligenciando os seus deveres em casa”.

Ao votarem “sim”, os eleitores irlandeses estarão a aceitar a substituição daquelas duas cláusulas por um novo artigo 42.º B, que estipulará que “o Estado reconhece que a prestação de cuidados por membros de uma família, entre si, em virtude dos vínculos que existem entre eles, confere um apoio à sociedade sem o qual não se pode alcançar o bem-comum, e esforçar-se-á para apoiar essa mesma prestação”.

Ainda que o apoio à eliminação da linguagem discriminatória da Constituição em relação às mulheres esteja praticamente garantido, segundo os estudos de opinião, alguns críticos do Governo, principalmente do campo ideológico da esquerda, queriam que o novo artigo fosse mais peremptório em afirmar que cabe ao Estado, e não aos privados, assegurar que as famílias irlandesas têm os cuidados que necessitam.

“Estou confiante de que a linguagem sexista e prejudicial do artigo 41.2.º será corrigida. Mas não tenho tanta confiança de que um futuro Governo venha a corrigir o nosso compromisso falhado recorrente de apoiarmos o bem público que é a prestação de cuidados às famílias e às comunidades”, diz à Reuters Siobhan Mullally, directora do Centro Irlandês para os Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Galway.

“Relações duradouras”

Já a “Emenda da Família” propõe a alteração do conceito de “família” consagrado na cláusula 1 do número 1 do artigo 41.º e na cláusula 1 do número 3 do mesmo artigo. O Governo irlandês quer que a Constituição precise que o Estado reconhece a família, “seja fundada no casamento ou noutras relações duradouras”, e que, mantendo o compromisso de “zelar com cuidado especial pela instituição do casamento”, elimine a referência ao casamento como o vínculo “onde se funda a família”.

Com esta alteração, explicou o executivo irlandês, o objectivo é salvaguardar os direitos das famílias monoparentais ou de casais que não sejam casados e que coabitam com os seus filhos.

“Acredito, sinceramente, que um voto no ‘não’ [nas duas perguntas do referendo] seria um retrocesso para o país”, afirmou Varadkar esta quinta-feira, em declarações aos jornalistas a partir de Bucareste, na Roménia, onde se realiza o congresso do Partido Popular Europeu.

“Significaria dizer a muitas pessoas – a centenas de milhares de adultos e crianças – que, nos termos da nossa Constituição, não fazem parte de uma família”, continuou. “Em relação aos cuidados, também significaria que a linguagem antiquada sobre as mulheres em casa e sobre os deveres das mulheres em casa seria mantida.”

Para o primeiro-ministro irlandês, o “duplo sim” da maioria da população, num referendo em que o principal receio é que a abstenção seja elevada, seria uma “demonstração valorosa” do que a República da Irlanda “defende enquanto sociedade.”

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