João Sá e “o único restaurante Michelin onde se ouve Bonga”

Queria a estrela, mas decidiu que só faria sentido conquistá-la se ele e a equipa se pudessem divertir no processo. Aumentou ordenados, reduziu horários, subiu preços. E está feliz no Sála, em Lisboa.

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João Sá conquistou uma estrela Michelin para o Sála, em Lisboa Manuel Manso
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Em 2023, João Sá tomou uma decisão: “Para fazer isto, vamos fazê-lo à minha maneira.” Perguntou à equipa se alinhava e eles disseram-lhe que sim. “Isto” era tentar conquistar uma estrela Michelin para o Sála (Lisboa) – o que veio a concretizar-se na Gala Michelin Portugal a 27 de Fevereiro em Albufeira – e à maneira dele era com diversão. “Temos de usufruir das coisas, isto não pode ser uma loucura onde as pessoas trabalham 16 horas por dia todos os dias e em que eu entro e se vejo uma coisa fora do sítio começo a gritar com toda a gente”, explica. “Para mim não fazia sentido ser assim.” Por isso, tomou uma série de decisões: fechou aos almoços às terças, quartas e quintas, reduziu o número de mesas, aumentou as brigadas na cozinha e na sala e aumentou os ordenados “em perto de 30%”.

Como é que se pode fazer isso e manter a sustentabilidade financeira? Aumentando os preços, diz João Sá, mas isso não foi um problema no caso do Sála porque o restaurante já tinha conseguido um fluxo de clientes que lhe garantia uma lista de espera de “três semanas a um mês”.

Se a decisão de ser feliz foi tomada em 2023, as coisas já tinham começado a mudar durante a pandemia. O Sála abriu em 2018, mas, conta o chef, foi o tempo passado em casa por causa da covid-19 que o fez reflectir numa série de coisas. “Quando voltámos, reuni a equipa e uma das decisões foi retirar a carne do menu.”

Manuel Manso
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A identidade do Sála começou a definir-se desde o início, mas foi nessa paragem forçada que ganhou consistência. Hoje, João Sá sabe definir exactamente o que é o seu restaurante: “Fiz um trabalho intenso para perceber onde estamos geograficamente. Este sítio é um enclave simpático, dantes havia aqui, no Campo das Cebolas, os armazéns onde se guardavam as mercadorias que chegavam à cidade, Alfama e Mouraria sempre foram bairros de integração cultural, e eu sou um português filho de angolanos que cresci com a moamba como prato dos domingos, tinha um abacateiro, sempre comi leite de coco, óleo de palma, especiarias, caril. Sou português e sou isto.” Por isso, fica feliz quando os turistas lhe dizem: “Nunca provei isto em Portugal, mas tenho a perfeita noção de que estou em Portugal.”

Ao dar-lhe uma estrela, o Guia Michelin classifica-o como “uma cozinha de grande nível” e, no texto sobre o Sála, destaca o facto de o restaurante estar “a viver uma etapa de maturidade”. “Ao ler aquilo, pensei que eles não só perceberam o Sála como andaram a acompanhar-nos ao longo do tempo”, congratula-se João, que julga ter tido duas visitas de inspectores mas não os identificou claramente.

O prato que o guia descreve é o mesmo que ele escolhe para resumir o seu trabalho: cuscos de Trás-os-Montes com coentrada e lingueirão, “tecnicamente simples, mas tremendamente visual e saboroso” nas palavras dos inspectores. Enquadra-o na sua visão de uma gastronomia de Lisboa, explicando que a origem dos cuscos tem a ver com o convívio entre judeus e mouros em bairros como Alfama. “Foram com os judeus para o Norte de Portugal e nós vamos buscá-los lá e trazemo-los novamente para Sul, fazendo uma coentrada.” Isto “no único restaurante com estrela Michelin onde se ouve [o músico angolano] Bonga”. Dá uma gargalhada: “Tinha tudo para dar errado, mas não deu.”

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