Vêm aí mais recordes de temperatura – e a culpa também é de um El Niño forte

Recordes de temperatura devem repetir-se até Junho, quando abranda a influência do El Niño, sugere estudo. Amazónia, Filipinas e outras regiões correm risco aumentado de fenómenos extremos.

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Agência meteorológica das Filipinas afirmou que 82 províncias do país podem enfrentar condições de seca quando o El Niño atingir o ápice nos próximos meses FRANCIS R. MALASIG/EPA
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A Terra tem testemunhado consecutivos recordes de temperatura – o mês passado foi não só o Janeiro mais quente alguma vez registado, mas também o oitavo mês seguido em que as temperaturas médias mensais ultrapassaram registos históricos. A má notícia é que este festival de recordes é para continuar, pelo menos até Junho deste ano, a partir de quando deve começar a diminuir a influência do padrão climático El Niño, sugere um estudo da Scientific Reports.

Os cientistas alertam para o risco aumentado de eventos climáticos extremos – incluindo incêndios florestais, ciclones tropicais e ondas de calor – em diferentes geografias. Entre as áreas mais susceptíveis estão a Amazónia, o Alasca, a costa do Caribe, as Filipinas e a baía de Bengala. Os dados disponíveis sobre o El Niño que estamos a atravessar já indicam que o fenómeno está entre os mais fortes desde os anos 1950.

“Estar prevenido é estar preparado. O nosso artigo prevê temperaturas superficiais recordes em várias regiões dos trópicos, tanto na terra como no oceano. As ondas de calor sobre a terra são perigosas para a saúde humana e aumentam o risco de incêndios florestais; no oceano, as ondas de calor marinhas são prejudiciais aos ecossistemas, aos recifes de coral e à pesca, e aumentam o risco de proliferação de algas nocivas. Alertas atempados sobre extremos iminentes oferecem um tempo valioso para definir a melhor forma de proteger vidas, bens, actividades económicas e recursos marinhos vivos”, afirma ao PÚBLICO o co-autor Michael McPhaden, cientista da agência norte-americana para o Oceano e a Atmosfera (NOAA, na sigla inglesa)​.

O modelo publicado na Scientific Reports, uma revista científica do grupo Nature, estima uma probabilidade de 90% de ocorrência de temperaturas médias globais recordes até Junho, num cenário de El Niño moderado ou forte. No cenário moderado, os autores prevêem uma temperatura global média à superfície em 2023-2024 entre 1,03 e 1,10 graus Celsius acima da média de referência, 1951-1980. Já num cenário de El Niño forte (o mais provável), os autores antevêem valores de 1,06 a 1,20 graus Celsius acima dessa média.

Fiquei surpreendido com o facto de o nosso modelo estatístico relativamente simples poder produzir, de forma fiável, previsões regionais detalhadas sobre o risco acrescido do aumento das temperaturas da superfície devido à combinação do El Niño e das tendências das alterações climáticas com até um ano de antecedência”, diz o cientista Michael McPhaden. O artigo da Scientific Reports foi divulgado nesta quinta-feira, mas foi elaborado e concluído em 2023.

Quando termina a influência do El Niño?

As temperaturas do ar à superfície da Terra são condicionadas não só pela actividade humana – grandes emissões de gases com efeito de estufa provocadas pela queima de combustíveis fósseis –, mas também por variações naturais. O sistema climático El Niño/Oscilação Sul (ENSO, na sigla em inglês) é um factor-chave nestas variações de ano para ano, provocando anomalias da temperatura tanto durante a fase mais quente (El Niño), como durante a mais fria (El Niña).

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O El Niño tem origem em águas invulgarmente mornas do oceano Pacífico oriental, ao largo da costa do Equador e do Peru – um fenómeno climático natural que tem influência nas condições meteorológicas. Este evento é comummente acompanhado por um abrandamento ou inversão dos ventos alísios de leste, interferindo na distribuição do calor que é libertado do oceano para a atmosfera.

Após três anos do padrão climático La Niña – que, ao contrário do El Niño, tende a fazer baixar ligeiramente os termómetros globais –, o planeta testemunha desde 2023 o padrão mais quente do ENSO. O estudo da Scientific Reports foca-se no período de Julho de 2023 a Junho de 2024, uma janela temporal que permite integrar o pico dos efeitos provocados pelo El Niño, que costuma durar de nove a 12 meses.

As previsões dos modelos climáticos sazonais indicam que o actual El Niño irá transitar para condições excepcionalmente frias de La Niña no Pacífico tropical em meados do ano. Se isso acontecer, então as temperaturas médias globais da superfície serão provavelmente mais baixas no final de 2024 e 2025 do que durante o ano passado. A nível regional, isto reduzirá temporariamente o risco de ondas de calor extremas na terra e no oceano, mas muito provavelmente não as eliminará. A menos que nós, como sociedade, reduzamos a emissão constante de gases com efeito de estufa para a atmosfera, as temperaturas da superfície continuarão inevitavelmente a subir a longo prazo, aumentando o risco de eventos extremos em todo o mundo, independentemente de estar em curso um El Niño ou La Niña”, alerta o investigador da NOAA.

Como medir a força do El Niño?

Os recordes sucessivos a que temos assistido resultam de uma combinação dos efeitos da crise climática com a influência do ENSO. Segundo os autores, o desenvolvimento do El Niño desde 2023 deve culminar “potencialmente num aquecimento sem precedentes em todo o mundo”. Os dados disponíveis até agora sugerem que este padrão climático ganhou muita potência desde 2023 e pode situar-se entre os mais fortes dos últimos 70 anos.

Para um El Niño ser oficialmente considerado forte, uma zona muito específica no oceano Pacífico precisa de aquecer 1,5 graus Celsius durante três ou mais meses seguidos. Esta área chama-se região Niño 3.4 e consiste num grande rectângulo imaginário que se estende ao longo da linha do Equador.​

A temperatura da superfície do mar na região Niño 3.4 no Pacífico equatorial central excedeu 1,5 graus Celsius acima do normal em Agosto e manteve-se acima deste limiar desde então. As temperaturas estão a diminuir lentamente de um máximo de 2 graus Celsius acima do normal em Novembro/Dezembro. Isso indica que o evento El Niño de 2023-24 já está entre os cinco eventos mais fortes desde 1950”, refere McPhaden numa resposta por email.

O estudo divulgado nesta quinta-feira, que prevê o risco de fenómenos climáticos extremos nas Filipinas, foi ultimado e submetido para publicação em Novembro de 2023. No final de Janeiro deste ano, fortes chuvas atingiram a ilha filipina de Mindanau (a segunda maior do arquipélago), provocando inundações, deslizamentos de terra, bloqueios de estrada. Mais de 350 mil pessoas foram obrigadas a deixar as próprias casas e a refugiarem-se em abrigos de emergência. Registaram-se pelo menos 110 mortes, incluindo 98 indivíduos que perderam a vida num aluimento na aldeia de Masara.

Um outro estudo, publicado na Nature este mês, alertava para o risco de a Amazónia atingir um ponto de não retorno já em 2050 devido a várias ameaças, incluindo o aumento da temperatura média, os fenómenos extremos de seca, a diminuição de precipitação e os incêndios florestais. Se nada for feito, entre 10% e 47% da área verde estaria em risco de se degradar, atingindo um ponto tão crítico cuja recuperação é improvável.

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