Temperaturas podem escalar em 2023 e chegar a um ponto sem retorno com o El Niño

Não é uma previsão consensual, mas um regresso do padrão climático El Niño pode trazer uma onda de calor que aproxima as temperaturas globais da subida de 1,5 graus.

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Em 2022, ondas de calor foram registadas em todo o mundo, mesmo sob um ciclo La Niña EPA/ANDY RAIN

Cientistas climáticos estão a fazer uma previsão sinistra: o regresso do padrão climático El Niño pela primeira vez desde 2019, o que traria uma onda de calor a um planeta já sobreaquecido. Após três anos de um persistente padrão de arrefecimento com La Niña a influenciar o clima em todo o mundo, prevê-se que esse regime se desvaneça nos próximos meses.

As primeiras previsões projectam que 2024 – e potencialmente até 2023 – poderia trazer recordes de calor médio global, aproximando o planeta mais do que nunca de um limiar de aquecimento que os cientistas e decisores políticos advertiram que seria desastroso.

"De acordo com o que os modelos dizem agora, existe uma maior probabilidade de El Niño para a segunda metade do ano", disse Andrew Kruczkiewicz, investigador sénior do Instituto Internacional de Investigação do Clima e Sociedade da Universidade de Columbia. Numa conjectura recente, cuja actualização estava prevista para esta quinta-feira, o instituto viu uma probabilidade de 66 por cento das condições do El Niño até ao final do Verão ou início do Outono.

"Contudo", sublinhou, "as coisas podem mudar".

Eis o que deve saber enquanto o mundo espera pelo seu próximo El Niño.

Subida das temperaturas pode chegar perto do limite de 1,5 graus

O padrão climático El Niño é marcado por águas mais quentes que o normal no Oceano Pacífico, que desencadeiam secas no norte da Austrália, Indonésia e África Austral, precipitação acima da média em todo o sul dos Estados Unidos, incluindo no sul da Califórnia, e, frequentemente, branqueamento de corais severo.

Além disso, tende a trazer um aumento das temperaturas médias globais, incluindo um calor pronunciado no sul da Ásia, Alasca e partes da América do Sul. Um El Niño forte ajudou a enviar as temperaturas globais para um recorde em 2016 (uma marca repetida em 2020).

Sabia que...

…só é tecnicamente uma “onda de calor” quando a temperatura máxima diária é superior em cinco graus Celsius ao valor médio no período de referência durante, pelo menos, seis dias consecutivos?

Alguns cientistas prevêem que a influência do El Niño, para além de mais alguns anos de aquecimento global causado, em grande parte, pela queima de combustíveis fósseis, irá aumentar as temperaturas dos próximos anos para além desses recordes.

Adam Scaife, chefe da previsão de longo alcance no serviço nacional de meteorologia do Reino Unido, e Bill McGuire, professor emérito de geofísica e riscos climáticos no University College London, estão entre os que sugerem que o El Niño poderia aumentar as temperaturas médias para perto ou acima dos 1,5 graus Celsius de aquecimento, comparando com as temperaturas pré-industriais. É uma referência que tem guiado o activismo climático e que prevê danos potencialmente irreversíveis.

Com o planeta sob um ciclo El Niño, McGuire escreveu na revista estaduniense Wired que "o clima extremo que se desenvolveu em todo o nosso planeta em 2021 e 2022 irá tornar-se insignificante".

Gavin Schmidt, director do Instituto Goddard da NASA para Estudos Espaciais, disse também que é possível que 2023 possa trazer um calor global recorde e que um El Niño significaria que 2024 teria "uma probabilidade muito alta" de ter recordes de temperatura.

Mas Schmidt disse que não é muito claro que 1,5 graus de aquecimento sejam iminentes, com a Terra mais de 1,1 graus Celsius mais quente do que era em 1880. Mesmo com um El Niño forte, ele previu que o aquecimento poderia atingir talvez 1,35 graus centígrados acima dos níveis pré-industriais.

Ciclo La Niña ainda não terminou

Embora alguns investigadores prevejam uma transição para o El Niño este ano, existem razões para duvidar dessas previsões. Para começar, o sistema climático conhecido como El Niño/Oscilação do Sul precisaria primeiro de passar à sua fase neutra – essencialmente, a ausência ou do La Niña ou do El Niño.

Os investigadores do Centro de Previsão Climática da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, na sigla em inglês) esperam que isso aconteça no início deste ano, mas talvez só mais tarde. O centro prevê uma probabilidade de 82% de que as condições neutras se desenvolvam algures entre Março e Maio.

Além disso, os cientistas sabem que esta altura do ano é um momento especialmente difícil para prever o futuro climático. Enfrentam um obstáculo conhecido como a "barreira da previsibilidade da Primavera" – uma camada extra de incerteza dentro dos modelos de previsão porque a Primavera é uma época inerentemente transitória para o El Niño/Oscilação do Sul.

O centro climático da NOAA reconheceu o desafio na previsão de um fim iminente do La Niña: "Contudo, uma menor precisão durante os tempos de transição, e quando as previsões passam pela Primavera, significa que a incerteza permanece elevada.”

Michael Glantz, um cientista sénior da Universidade do Colorado que estuda os impactos sociais do El Niño, chamou à previsão climática "um pouco de arte, um pouco de ciência".

"O ciclo não é limpo. Sobre o La Niña já se tem dito que vai acabar há alguns anos. Ainda não acabou", comentou. "Mas, a dada altura, eles vão ter razão.”

Fases neutras reduzem certeza das previsões

Embora o El Niño tenha ajudado a impulsionar 2016 para níveis recorde de calor, o planeta estava igualmente quente em 2020 – apesar da influência relativa do arrefecimento de La Niña. Isto mostra que qualquer fixação sobre a provável ou potencial desgraça e infelicidade proveniente de um El Niño é descabida, argumentou Kruczkiewicz.

"Ter uma temperatura média anual que seja até a mais alta de todos os tempos não se correlaciona necessariamente com ondas de calor mortíferas em todo o mundo ao mesmo tempo", disse ele. "Tivemos La Niña nos últimos anos, e adivinhem só? Tivemos uma tonelada de ondas de calor.”

Uma contradição semelhante pode ocorrer com os furacões atlânticos, cuja formação ou o fortalecimento o El Niño é conhecido por desencorajar. Essa influência não impediu que o Furacão Andrew, o único furacão da Costa Leste que atingiu a costa oriental durante as condições do El Niño em 1992, se tornasse a catástrofe natural mais cara do país na altura.

E mesmo uma mudança de La Niña para condições neutras é motivo de preocupação, disse Kruczkiewicz. Os impactos do La Niña e do El Niño nos padrões meteorológicos são bem conhecidos, mas a ausência de qualquer um deles implica uma falta de certeza nas previsões sazonais, que já são notoriamente difíceis.

"Esta fase neutra não deve ser uma justificação para relaxar", disse Kruczkiewic.

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