Ciência e inovação, ou as árvores e os seus frutos

É com enorme espanto e preocupação que constatamos que quem está à frente do financiamento de ciência em Portugal não partilha a visão que sem ciência fundamental não há ciência para aplicar.

A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) – a principal fonte de financiamento da ciência em Portugal – tem actualmente um concurso aberto para Projectos de Investigação e Desenvolvimento em Todos os Domínios Científicos. O concurso abriu com uma nova Visão Global e Objectivos.

No aviso lê-se: “Serão apoiados projectos de IC&DT, reconhecidos internacionalmente, centrados no desenvolvimento de actividades de investigação em todos os domínios científicos, que se proponham estimular uma economia de elevado valor acrescentado, bem como a excelência, a cooperação e a internacionalização, visando processos de inovação com finalidade de mercado e o aumento da criação de conhecimento para resposta a desafios empresariais e societais [sublinhado dos autores].”

É por vezes difícil para quem está fora do processo científico entender o papel da ciência e aquisição de conhecimento na sociedade e a natureza do progresso que ela gera. Mas que a própria Fundação para a Ciência e a Tecnologia limite a sua função a financiar produtos finais da ciência, em vez do processo científico que pode levar a esses produtos, é pouco compatível com uma Visão Global sobre a ciência. Por exemplo, concentrar esforços a estudar a cera e o pavio para melhorar a vela, fonte essencial de luz, visando “processos de inovação com finalidade de mercado”, não teria levado à descoberta da electricidade e à criação da lâmpada.

É preciso produzir conhecimento para que possa haver aplicações desse conhecimento. Louis Pasteur acreditava que “não existe uma categoria especial da ciência chamada ‘ciência aplicada’; existe a ciência e as suas aplicações, que estão relacionadas entre si como o fruto está relacionado com a árvore que o produziu”.

A lista das inovações científicas que surgiram de ciência fundamental é tão longa, que seria impossível resumi-la aqui, pelo que nos limitamos a dar um exemplo, o da técnica de PCR (Polymerase Chain Reaction) que entrou no vocabulário de todos durante a pandemia da covid-19. Trata-se da técnica que revolucionou a biologia ao permitir-nos “ler” o código genético. É hoje usada rotineiramente em todo o mundo, em áreas que vão da medicina à agricultura, sem esquecer o seu papel crucial no estudo da evolução dos seres vivos, incluindo os humanos.

Esta técnica nunca teria sido possível se a curiosidade humana não tivesse levado dois biólogos, Thomas D. Brock e Hudson Freeze, a interessarem-se pelas fontes termais do Parque Nacional do Yellowstone, nos Estados Unidos da América. Poderia haver vida a mais de 65 graus Celsius? Tal era considerado impossível, pois acima dos 55 graus Celsius as proteínas conhecidas até então não resistiam. A curiosidade aliada à persistência levou à descoberta de uma bactéria, na altura nova para a ciência, que designaram como Thermus aquaticus. Esta bactéria mudou o curso da história por ser a fonte da enzima Taq DNA polymerase, um tipo de proteína essencial à técnica de PCR, na qual são empregadas temperaturas superiores a 65 graus Celsius.

É por isso com enorme espanto e preocupação que constatamos que quem está à frente do financiamento de ciência em Portugal não partilha a visão que sem ciência fundamental não há ciência para aplicar e, como se diz, “inovar”. No actual concurso da FCT, prevê-se que do total de projectos financiados só cerca de 10-15% serão projectos de investigação fundamental. Note-se que a taxa de sucesso destes projectos tem estado abaixo dos 10%, o que significa que o financiamento para projectos de ciência fundamental será de cerca de 1%. Investigadores como Brock e Freeze, dedicados que estavam a empurrar as fronteiras do conhecimento ao procurarem espécies em zonas altamente improváveis, seriam muito provavelmente excluídos deste processo.

Talvez mais surpreendente ainda seja as regras deste concurso especificarem que o orçamento dos projectos de investigação “aplicada” que vão a concurso não possa canalizar mais do que 10% para investigação ‘fundamental’, e apenas se “acessória” e realizada “a montante” dos objectivos aplicados.

Ora, como referia Pasteur, a linha entre ciência fundamental e aplicada é no melhor dos casos ténue, e muitas vezes impossível de estabelecer. No exemplo acima, a partir de quando é que o estudo que levou à descoberta da enzima Taq DNA polymerase passou de fundamental a aplicado?

As aplicações da ciência devem ser incentivadas e apoiadas, mas não podem constituir a base da ciência em nenhum país, tal como 10% de uma árvore dificilmente poderão produzir frutos.

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