Sementes de violência, de Portugal à Palestina

Socorrer quem precisa já não é entendido como acto espontâneo de qualquer ser humano, antes se franze o sobrolho, confuso com o significado da frase, ou se olha para o lado, indiferente.

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Duas situações preencherão este artigo, uma, relacionada com a violência na escola, a segunda, com a violência contra os palestinianos.

1. A hedionda e recente agressão sexual a um menino de 11 anos, por alunos mais velhos, numa escola pertencente ao Agrupamento de Escolas de Vimioso (Bragança), retoma, a meu ver, a excessiva negligência, existente por vezes na escola, aliada a teorias que menorizam a responsabilidade dos alunos, procurando compreender a “brincadeira” (termo usado pelos agressores) que põe em causa o bem-estar de outros colegas, normalmente mais novos, e também o de professores e de auxiliares de educação.

Justifico a minha afirmação com o facto de, por várias vezes, no final da década de 90, ter presenciado, ouvindo, a grosseria e a extrema indisciplina de alunos, na sala ao lado da que me encontrava a leccionar, vindo depois a saber que o professor em causa fora, na óptica da direcção, considerado o culpado porquanto não conseguira manter a disciplina na sua sala, invariavelmente com mais de 20 alunos, alguns dos quais com comportamentos a raiar a delinquência. Quando presenciei também um colega meu a ser ultrajado no corredor por onde passava, o ultraje foi menosprezado por quem de direito, tendo-se acusado, ao invés, a incapacidade do professor em defender-se e nem os depoimentos de quem assistira à situação causaram qualquer mudança de atitude.

A experiência mais chocante, motivada pela agressão grave a um aluno, ocorreu, no entanto, no início deste século, com a situação de um aluno do 3.º ciclo, de ascendência indiana, a quem um grupo de alunos mais velhos pôs um funil na boca, no intuito, conseguido, de nele esvaziarem uma considerável quantidade de vinho. Não pormenorizarei as nefastas consequências, físicas e psicológicas, adiantando apenas que esse aluno acabou por sair da escola, talvez por vontade própria, desconheço-o, dado o que ali vivera. Perante a extrema violência do acontecimento, houve ainda quem defendesse que não se deveria ser “demasiado duro” com os agressores cujo gesto poderia reflectir os “efeitos de infâncias sofridas”. Não ponho em causa esses “efeitos”, mas, na altura, lamentei que se tentasse minimizar uma situação gravíssima, com uma leitura que compreendia os agressores, beneficiando-os, esquecendo a vítima.

As pessoas cujo comportamento “generoso” descrevi, foram, aliás, as mesmas que, face à destruição de poemas, fotografias e cartazes (riscados e rasgados) de uma exposição sobre Fernando Pessoa, realizada por alunos do ensino nocturno, justificaram o acto com o argumento de que: “Afinal, não tinham sido indiferentes à exposição, manifestando-se apenas de forma diferente. Seria preciso trabalhar ainda mais com eles…”

Esta negligência foi agravada, estou convicta, pela criação e imposição de mega-agrupamentos, em 2008, intensificados pela troika em 2012 e centralizados na figura de um director, pondo fim a uma gestão de proximidade. O aumento da população escolar em alguns agrupamentos e os sucessivos conflitos não só entre professores, mas também entre alunos (idades muito diversas); a ineficácia na resolução atempada dos problemas; a excessiva burocracia; a inoperância da coordenação das várias escolas porquanto dependente da disponibilidade do director do agrupamento, tudo tem vindo a contribuir para dificultar a governação das várias escolas agrupadas (o aumento da violência é disso um exemplo), deteriorar o ambiente escolar e ocasionar a perda da dimensão humana.

Assim como uma cidade se torna ingovernável pelo excesso de população, como salientou o filósofo grego Aristóteles (384 a.C. – 322 a. C.), em A Política, assim é com a escola. Transcrevo palavras suas: “Cada coisa, para possuir todas as propriedades que lhe são próprias, não deve ser nem muito grande nem muito pequena, porque, nesse caso, ou perde completamente a sua natureza, ou perverte-se […]. O mesmo se passa relativamente à cidade; demasiado pequena, não pode satisfazer as suas necessidades, o que constitui uma condição essencial da cidade; demasiado extensa, basta-se a si mesma, não como cidade, mas como nação, e nela quase se torna impossível o governo.”

2. No que a Gaza diz respeito, não há fim à vista para a ostentação desenfreada da injustiça, praticada ou apoiada pelos que se pensam modelos exemplares para o mundo, a que se associa a mais despudorada falta de compaixão. Anulados na sua condição humana, os palestinianos sofrem diariamente, e à vista de todos, fome, sede e falta de assistência médica, bem como constantes ameaças e concretizações de bombardeamentos. Amontoados, por imposição dos israelitas, num espaço reduzido, de onde não é possível fugir, continuam a ser intimados a fugir para “zona segura” cujo local se desconhece.

Os palestinianos vivem a sua liquidação, sob acção de um espírito vertiginosamente vingativo e perturbante quanto à invocação de Deus diz respeito. Na verdade, Netanyahu e os seus comparsas ultra-ortodoxos tudo arrasam, num grau de destruição apocalíptico, confundindo combatentes com civis. Partilham, visivelmente, da atroz ideia hitleriana de “acabar com vidas não merecedoras de vida”, reflectida na tenebrosa frase, à entrada dos campos de concentração: “A cada um o que merece”.

A denúncia pelos israelitas de, alegadamente, no terrível e sangrento 7 de Outubro 2023, estarem, entre os atacantes do Hamas, 12 funcionários (entre 13.000) da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos gerou nova investida dos habituais: EUA e seguidores (Canadá, Austrália, Inglaterra), a par de França, Alemanha e outros que irão suspender a sua contribuição para a referida Agência, punindo assim ainda mais os civis palestinianos cuja vida depende quase exclusivamente dessa ajuda. E nem a rescisão dos contratos de trabalho com os que supostamente se envolveram com o Hamas, nesse dia, nem a investigação que decorre, movida pela denúncia israelita, demoveu o gesto precipitado e desumano desses países. Já o número de palestinianos mortos diariamente parece não incomodar os moralistas! Numa hipocrisia repelente, mas que, na verdade, está de acordo com a sua natureza, aguardam conclusões. Afinal, a vida continua…

Socorrer quem precisa já não é entendido como acto espontâneo de qualquer ser humano, antes se franze o sobrolho, confuso com o significado da frase, ou se olha para o lado, indiferente. São os novos valores dos que apoiam os que massacram, “desprovidos de qualquer sentimento moral”, e um exemplo flagrante de quem anula o rosto do outro, à semelhança do que fizeram os nazis que, fotograficamente, esvaziaram o rosto dos prisioneiros judeus, de forma a impedir um futuro reconhecimento. Esquecerão também, e parafraseio Michelet (1798-1874), que as querelas e os ódios do presente perpetuarão as querelas e os ódios, no futuro?

E a propósito da violência da guerra que grassa em grande parte do Mundo, chamo a atenção para o novo trabalho de Miguel Buzaglo - Olhar o Planeta que flutua.. / Meia Haste.

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