Instabilidade política? Cavaco diz que soube resistir à oposição do Presidente Soares

No segundo de dois artigos de opinião, Cavaco Silva volta a criticar o Governo, mas vira a agulha para Belém. Num recado para Marcelo, recorda as tentativas de Soares de condicionar o seu governo.

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Cavaco Silva foi primeiro-ministro entre 1985 e 1995 LUSA/ANTÓNIO COTRIM
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Com ironia e alguma provocação, o antigo Presidente da República e antigo primeiro-ministro, Aníbal Cavaco Silva, volta a recordar o seu passado em São Bento, para relembrar como sofreu uma "oposição bastante aguerrida" por parte do PS, mas também por parte de Mário Soares, então Presidente da República. No segundo de dois artigos de opinião publicados no jornal Observador, Cavaco Silva não cita os nomes de António Costa ou Marcelo Rebelo de Sousa, mas lembra nas entrelinhas como fez frente ao "contrapoder" de Soares e evitou a demissão do Governo e dissolução do Parlamento.

Se por um lado Cavaco Silva normaliza a oposição aguerrida liderada por António Guterres que, "com algumas excepções, se situou dentro das regras do combate político em democracia", o mesmo não acontece em relação à "anormal" acção do Presidente da República, Mário Soares, "certamente incomodado com a dimensão da obra realizada pelo governo". Segundo Cavaco, o histórico socialista "abandonou explicitamente a posição de isenção e independência em relação às forças político-partidárias e passou a ser parte activa do jogo político". Mas mais do que ter abandonado a isenção que lhe era exigida, Cavaco acusa Soares de ter assumido uma atitude de "ataque ao governo".

O antigo primeiro-ministro foi até aos seus arquivos e recuou mais de 30 anos para citar o que então escrevia a comunicação social, recordando um artigo publicado em Fevereiro de 1993 pelo Expresso, onde se lia que Soares tinha a “aparente obsessão de dizer preto quando o executivo diz branco”. O resultado, diz Cavaco, foi a inevitabilidade de considerar Mário Soares "como um adversário político e uma 'força de bloqueio'”.

Antecipando que a "oposição explícita" de Soares "afectaria negativamente a popularidade" do seu executivo, Cavaco definiu "uma estratégia assente em dois pilares fundamentais": por um lado continuar a cumprir o seu programa e deixar o combate político para o grupo parlamentar do PSD. "Com Sá Carneiro, eu tinha aprendido que um primeiro-ministro que se deixe guiar pela popularidade não resolve os problemas do país", escreve, no que parece ser uma alusão a António Costa.

Uma vez mais, Cavaco recorre aos seus arquivos para sustentar as suas críticas, recordando um artigo de 19 de Dezembro de 1994, publicado no Diário de Notícias​, onde se lia que “os vetos são mais uma peça entre muitas outras que Soares vai montar, sempre nos bastidores, até ao final do seu mandato, para desgastar a imagem do governo”.

Os analistas políticos de então acabaram por reconhecer que, através do poder de veto e de envio de diplomas para o Tribunal Constitucional, foram poucas as medidas relevantes para o progresso do país cuja concretização foi impedida pela oposição política do Presidente, o que deixou nos membros do governo um forte sentimento de orgulho, que pode ter sido confundido com arrogância.

O antigo primeiro-ministro recorda assim uma remodelação em Dezembro de 1993, a meio do seu mandato enquanto primeiro-ministro. "Foi uma remodelação da qual hoje, olhando ao ainda governo do país de maioria absoluta, que primou pelo seu próprio desmoronamento, sinto uma certa arrogância, ou melhor dizendo, orgulho", atira Cavaco.

Cavaco continua para insistir que "Mário Soares muito se esforçou para desgastar a imagem do governo através do seu comportamento e atitudes, como a comunicação social bem o ilustra" e que as manifestações contra o Governo eram "estimuladas" e que lhes era garantido "boa cobertura mediática". O ex-líder social-democrata defende a robustez do seu Governo que, nem mesmo com um semanário "especializado em campanhas de mentiras e cabalas políticas" e "cócegas e incómodos em membros do governo" - uma referência ao Independente - foi abaixo ou perturbado. "Pessoalmente, nunca tive apetência nem jeito para a arte de sedução dos jornalistas", atira.

O antigo primeiro-ministro recorda as tentativas de Soares avançar com a dissolução do Parlamento, o que não chegou a acontecer, por falta de respaldo político. "Soares não voltará a discutir a dissolução do Parlamento, sequer como hipótese, nos próximos jantares com os seus amigos políticos. Se o fizer e houver notícia, o Presidente da República corre o risco de manchar, por força de uma excessiva fixação anticavaquista, a fase terminal do seu mandato", escrevia o Expresso em Dezembro de 1993, recorda Cavaco em Janeiro de 2024.

No que parece ser um recado a António Costa, que culpou Marcelo Rebelo de Sousa pela "irresponsabilidade da crise política", Cavaco afirma que sempre se recusou a fazer comentários públicos sobre as críticas do Presidente ao governo, nomeadamente sobre as tentativas de bloqueio da ponte, "por mais violentas e absurdas que fossem, enquanto as estruturas do PSD o acusavam de constituir-se parte do jogo político, deixando de ser árbitro do sistema e assumindo-se como contrapoder".

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Cavaco Silva diz que enfrentou a oposição de Mário Soares, mas não deixou que isso deitasse abaixo o seu Governo e interrompesse o seu ímpeto reformista ANTONIO COTRIM/LUSA

Cavaco queixa-se ainda da falta de reconhecimento de Soares."Sempre me vira como um não-político no poder. Pessoalmente, o que me motivava era cumprir o programa reformista do governo", diz. Na lista de arrependimentos, o antigo primeiro-ministro assume um: «Numa tentativa de acalmar os críticos de Mário Soares dentro do PSD, fiz uma afirmação que muito o irritou: Temos de ajudar o senhor Presidente da República a acabar o seu mandato com dignidade”. Não a devia ter feito

E com as eleições à porta, Cavaco também fez contas à avaliação que os portugueses fizeram ao seu governo nas europeias seguintes à conquista da maioria absoluta. "Depois de quase nove anos consecutivos de Governo, [o PSD] obteve apenas menos 48 décimas do que o PS e aumentou mesmo a percentagem em relação à eleição de 1989, o que criou uma frustração indisfarçável nas forças da oposição ao governo".

Este ano há europeias, mas não servirão de barómetro, já que as eleições legislativas antecipadas acontecem já a 10 de Março.

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