Como é que se trabalha o consentimento?

Como é que jogam rugby ou se abraçam quando metem golo? Sabes o que acho? Que com as melhores das intenções deixámos o mal ganhar, porque na verdade ficámos reféns da infinita minoria de abusadores.

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A fotografia que ilustra esta crónica é de quando fui cantar às Canárias e levei o Mini E. comigo EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Ana,

Há uns tempos estive a contar histórias em escolas primárias em Inglaterra, e fiquei maravilhada com muitas coisas boas (nomeadamente o empenho das professoras de português), mas em estado de choque com a regra de não poder tocar nas crianças, aqueles gestos tão nossos de por a mão na cabeça, as mãos nos ombros, dar uma mão quando caminhamos num corredor. É completamente proibido. E se percebo o perigo (e o trauma) dos abusos infantis, e se reconheço que por vezes pode ser desconfortável para uma criança ser abraçada (ou, em Portugal, beijocada) por um estranho, sem a capacidade (e oportunidade) de exprimir o seu “consentimento”, fiquei arrepiada com aquela autocensura que impede o toque. Parece-me que nós, os adultos, ficamos a perder com isso, mas perdem sobretudo as crianças, sem colo da professora, dos educadores que estão à sua volta todo o dia.

Mas tudo isto, na versão já paranóica, vai mais longe — eles próprios, de 5, 6, 7 e 8 anos têm de pedir autorização para se tocarem uns aos outros. Desculpa a ironia, mas como é que jogam rugby ou se abraçam quando metem golo? Sabes o que acho? Que com as melhores das intenções deixámos o mal ganhar, porque na verdade ficámos reféns da infinita minoria de abusadores. Dito isto, nem que fosse só uma criança abusada era uma tragédia.

Ana, onde está o meio-termo? Não tomarmos o corpo das crianças como nosso, permitindo-lhe que possam recusar falar de beijinho, por exemplo, mas sem os privarmos da naturalidade do gesto tão humano que é o toque?


Querida Mãe,

É mesmo difícil navegar neste assunto. Por um lado, como temos acesso a mais informação, a mais histórias de terror e como estamos, felizmente, mais conscientes sobre os sentimentos, desenvolvimento e saúde física e mental das crianças, é difícil não tentar a todo o custo protegê-las de todos os possíveis riscos. É difícil saber que algo pode acontecer e não tentar fazer tudo o que é possível para evitá-lo.

O problema é que muitas vezes nos esquecemos dos riscos que surgem como efeitos secundários dessas medidas todas. Num exemplo, tonto, mas mais fácil de compreender: Eu acho que nada justifica o risco do meu filho morrer afogado, por isso vou viver para o meio do deserto e nunca o deixo ir para perto de água. Quando cresce vai explorar o mundo, encontra o mar, e como não sabe nadar, ou gerir os riscos, afoga-se.

Da mesma forma, nós nunca saberemos proteger-nos de algo que não conhecemos. Não vamos compreender a diferença entre um toque apropriado ou pouco apropriado se não formos tocados. Não vamos saber o que gostamos e o que não gostamos.

Os seres humanos nascem 100% dependentes de outros cuidadores E do toque deles. É através do toque que se co-regulam, que se acalmam, que sentem e ultrapassam os limites do seu próprio corpo. É através do toque, antes de qualquer outro sentido, que as crianças aprendem a forma, a textura, etc.. E é também através do toque se relacionam umas com as outras. Os abraços, os empurrões, as mordidelas, os beliscões, são tudo formas de comunicar e exprimir. E o colo, o embalo, pôr uma criança a rodar, “atiráa-la” ao ar, são tudo formas de desenvolver várias competências (sentido vestibular, equilíbrio, etc.) que nos tornam mais capazes como adolescentes e adultos. Além disso, mesmo em termos sensoriais, se não formos muito tocados durante a infância o toque tornar-se-á algo ameaçador. Um simples abraço parecerá assustador.

Dito tudo isto, como é que se trabalha o consentimento? Como é que se fala com os nossos filhos sobre os riscos de abuso, sem os assustar demasiado. Achei sensatos os conselhos de Anita Schmalor, Ph.D., fundadora do Growing Up Connected. para crianças pequenas que diz que os pais e educadores podem:

  1. Estar atentos para legendar o que as crianças sentem com certos toques. Por exemplo “ah parece que não estás a gostar desse abraço” ou “vês, o x está a chorar quando o empurraste acho que o magoaste”, etc..
  2. Modelar os limites que temos com os outros.
  3. Não levar a peito e aceitar quando os nossos filhos não querem um toque ou beijinhos nossos ou de alguém e incentivar outras formas de cumprimentos.

Com os mais velhos podemos ir abrindo a conversa sobre áreas do nosso corpo que são privadas e onde ninguém pode tocar, ou o que fazer caso alguém nos toque de uma forma que não gostámos ou que nos fez sentir desconfortáveis.

Beijinhos!

P.S.: A fotografia que ilustra esta crónica é de quando fui cantar às Canárias e levei o Mini E. comigo. No voo para cá, estava desesperada porque ele não parava quieto. O senhor ao meu lado foi ajudando e brincando com ele e quando lhe pegou ao colo, o mini E. adormeceu. É das imagens mais bonitas que guardo dessa viagem e temo o dia em que temos todos tanto medo uns dos outros que perdemos estas oportunidades.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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