Carlos Lyra (1933-2023), o “legado extraordinário” de um grande melodista

Para a música brasileira, é mais uma grande perda: cantor, violonista e compositor ligado aos alvores da bossa nova, Carlos Lyra morreu neste sábado, aos 90 anos.

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Carlos Lyra e o seu violão, numa imagem de arquivo DR
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No final de um ano que já registara as perdas de João Donato e Lenny Andrade, ambos em Julho, morreu na madrugada de sábado mais um nome ligado aos alvores da bossa nova: o cantor, violonista e compositor Carlos Lyra. Tinha 90 anos e tinha sido internado com febre na quinta-feira, num hospital da Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro. A causa da morte não foi anunciada, admitindo-se que possa ter sido infectado por uma bactéria.

Nascido no Rio de Janeiro, no bairro do Botafogo, em 11 de Maio de 1933, Carlos Eduardo Lyra Barbosa cresceu numa família em que a música já estava presente há gerações, segundo a Enciclopédia da Música Brasileira (Art Editora, 1977). Estudou num colégio de jesuítas e aprendeu a tocar violão na adolescência, depois de tirar os primeiros sons, na infância, de um piano de brinquedo, passando depois a experimentar a harmónica. Foi a música que o levou a abandonar os estudos de arquitectura quando, juntamente com Roberto Menescal, abriu uma academia de violão no Rio, onde ambos davam aulas e por onde passariam futuros músicos e cantores como Marcos Valle, Nara Leão, Edu Lobo ou Wanda Sá.

A primeira canção que escreveu foi Quando chegares (em 1954), seguindo-se Menina, que Geraldo Vandré (que se apresentava como Carlos Dias) defendeu num festival em 1955 e que Sylvinha Telles viria a gravar em 1956, num disco tido como um dos precursores da bossa nova, movimento onde pontificaram Tom Jobim. Vinicius de Moraes e João Gilberto e no qual Lyra viria a envolver-se, com os discos Bossa Nova (1959) e Carlos Lyra (1961). No mesmo ano do seu primeiro LP, teve três canções suas (Maria ninguém, Lobo bobo e Saudade fez um samba) gravadas por João Gilberto no álbum Chega de Saudade (1959).

Mas a sua participação no Festival Bossa Nova realizado em Nova Iorque, no Carnegie Hall, no dia 21 de Novembro de 1962 (junto com João Gilberto, Roberto Menescal, Luiz Bonfá, Agostinho dos Santos, Bola Sete, Sérgio Mendes, Sérgio Ricardo e outros) levou-o depois a afastar-se do movimento, dada a forma algo atrapalhada como, no seu entender, tal concerto decorreu. “Ficou até hoje a nossa vergonha, o dia do Carnegie Hall”, disse Lyra ao musicólogo Zuza Homem de Mello, no livro Eis Aqui os Bossa Nova (WMF, 2008).

E passou a afirmar que a sua música não era bossa nova mas sambalanço. O seu terceiro LP, Depois do Carnaval, já foi subtitulado “o sambalanço de Carlos Lyra” (1963) e incluía canções como Influência do jazz, Se é tarde me perdoa ou Marcha de Quarta-Feira de Cinzas, sendo esta uma das suas parcerias com Vinicius de Moraes. E foi com ele que se envolveu em 1965 na banda sonora do musical Pobre Menina Rica, para a qual escreveu Maria Moita, que, gravada em disco, em 1964, com a voz de Thelma Soares, veria o seu fraseado inicial praticamente decalcado no riff de Smoke on the water, dos Deep Purple.

Um dos álbuns de Carlos Lyra, Carioca de Algema, de 1994, inclui um dueto com a cantora portuguesa Eugénia Melo e Castro, um dos muitos que ela gravou com artistas brasileiros, na faixa Amarga vinha, com produção de Roberto Menescal. Essa canção viria a ser incluída numa compilação de Eugénia lançada no ano 2000 e intitulada A Luz do Meu Caminho.

A instauração da ditadura militar no Brasil, em 1964, levou-o a partir para os Estados Unidos, onde trabalhou com Stan Getz, até regressar ao Brasil em 1971, onde voltou a actuar e a gravar. Em 1979, regeu um coro de cinco mil vozes no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Salvador da Bahia, que entoaram o Hino da UNE, que Lyra havia composto com Vinicius de Moraes. Carlos Lyra tinha sido, em 1961, um dos fundadores do Centro Popular da Cultura da UNE, junto com Ferreira Gullar, Leon Hirzman e outros.

Alvo de homenagens e celebrações já nos anos 2000, Carlos Lyra gravou em 2019 o álbum Além da Bossa, uma derradeira obra-prima a juntar à sua discografia. Na fotografia da capa, tinha um charuto nas mãos, e na da contracapa, um microfone, síntese do que terá sido a sua vida, entre a música e outros prazeres. No tema A bossa nova é foda, é a ele que se refere Caetano Veloso (no álbum Abraçaço, de 2012), quando diz: “O magno instrumento grego antigo.” Esse “magno” é Carlos e o “instrumento grego antigo” é a lira. Carlos Lyra.

Ao ser noticiada a sua morte, não tardaram as reacções de amigos e músicos nas redes sociais. Gilberto Gil enalteceu “o legado extraordinário” que Lyra nos deixou aos 90 anos, enquanto a cantora Wanda Sá tornava público o seu agradecimento a Lyra “pela música, pelos acordes, pela bossa nova e pela nossa amizade de 60 anos”. E Toquinho, cantor, compositor e parceiro musical de Vinicius de Moraes nos últimos anos da vida do poeta, elogiou Carlos Lyra, classificando-o como “o melhor melodista da música brasileira”.

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