“Uma só Saúde”: um (outro) paradigma

O excelente conceito integrado e holístico de “One Health”, ou “Uma só Saúde”, facilmente se transforma num pesadelo logístico em Portugal.

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Num momento em que estamos a repensar opções políticas, talvez fosse de ambicionar um pouco mais no âmbito de uma organização que nos pusesse a falar mais uns com os outros, e pudesse dar respostas mais ágeis a múltiplos desafios. O conceito de “One Health”/“Uma só Saúde” é um bom ponto de partida.

Desde sempre que a saúde é entendida como envolvendo, não só condições intrínsecas aos doentes, mas também o que os rodeia. As zoonoses (doenças transmitidas por agentes que afetam animais não-humanos) salientaram o papel fundamental da medicina veterinária; e a noção que todos os seres vivos estão intimamente relacionados com o seu meio ambiente, vinca a importância da biologia. Pessoas, Animais, Ambiente formam assim três círculos concêntricos em “One Health”.

No entanto, como a recente pandemia demonstrou, aspetos psicológicos e sociais, ou económicos e de comunicação, são fundamentais para uma resposta eficaz. Nessa perspetiva é interessante conhecer o plano tetrapartido (2022-26) estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Mundial da Saúde Animal (WOAH), a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Programa Ambiental das Nações Unidas (UNEP).

Este ano o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) promoveu a 3 de novembro, dia internacional “One Health”, um seminário internacional sobre o tema. As discussões tidas revelaram, por um lado, o imenso potencial da abordagem, por outro, os constrangimentos determinados pelas diversas assimetrias. Por exemplo, do ponto de vista de segurança alimentar ter procedimentos estritos não servirá de muito se não forem aplicados globalmente, o que será difícil se isso significar um aumento preços em países importadores, que promoveram esses mesmos procedimentos; um dilema aplicável a muitos outros contextos.

Ora, quando se pensa em “One Health” em Portugal têm de se equacionar as várias entidades que se teriam de coordenar para dar resposta a desafios como uma nova pandemia, a resistência a antibióticos, os efeitos das alterações climáticas, o acesso à água ou a disponibilização de alimentos de qualidade. Nos ministérios (e/ou secretarias de Estado) teríamos de contar com os que têm ação nas áreas da Saúde, Agricultura, Ambiente, Ciência, Educação e, inevitavelmente, Economia e Finanças. Depois haveria que mobilizar as Direções Gerais (Saúde, Alimentação e Veterinária, Educação, Finanças...) ou as agências (do Ambiente, da Inovação) relevantes, mais institutos e Laboratórios do Estado, a que se juntariam diferentes ordens profissionais e sindicatos.

Ou seja, o excelente conceito integrado e holístico facilmente se transforma num pesadelo logístico. Utilizando uma estratégia de “experiência mental”, em que imaginamos resultados sem fazer o ensaio, chegamos rapidamente a potenciais obstáculos: 1) cada instituição ou grupo profissional, muito ciente das suas responsabilidades, não admitir ingerências no seu raio de ação (as chamadas “capelinhas” corporativas); 2) de igual modo, nenhuma instituição querer “invadir” o espaço de outrem; 3) como corolário, nas regiões de fronteira ninguém assume responsabilidades. Tudo isto surge numa discussão mais aprofundada, não sobre o conceito de “One Health” (toda a gente está de acordo), mas sobre como o aplicar na prática.

Por isso as intervenções de Rosa Moreira (Angola), Adeonilde Aguiar (São Tomé e Príncipe) e Marion Muehlen (OMS) no simpósio de 3 de novembro foram tão interessantes. Isto porque os dois países africanos pareciam mais avançados na aplicação do conceito “One Health” na prática. O que se devia a uma menor abundância de recursos, obrigando à junção de esforços. Já a experiência-piloto da OMS para prevenir o espalhar de novas pandemias é para ser montada (e é uma escolha consciente) exatamente no mesmo tipo de contextos; ou seja, locais onde rareiem as “capelinhas”, não por falta de vontade, mas por falta de meios.

Na ausência de uma integração e liderança fortes (e sem uma condição de emergência), a opção habitual é fazer pouco, porque a inação tende a ser mais recompensada do que a iniciativa. Por isso, mais do que novos governantes cheios de vontade de dar nova vida ao “sistema”, talvez fosse de mudar a organização do dito sistema, arranjando maneiras de pôr a falar os diferentes atores de um modo continuado e colaborativo. Com responsabilidades claras e transparência, e não temendo o erro competente, porque é inevitável e útil, ao contrário da incompetência desleixada ou por omissão. E focando as diferentes pessoas no terreno, mais do que os dirigentes, que, no mínimo, podiam não atrapalhar. Em vez de exigir mais meios, recapitalizar (a todos os níveis) os já disponíveis seria talvez mais eficiente para fazermos pelo menos tão bem como aqueles que nem os têm. “One Health” pode ser um bom pretexto para essa nova abordagem.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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