Como nos preparamos para a próxima pandemia? Pensando em “uma só saúde”

Conceito de One Health – “Uma só saúde” – vê a saúde humana, animal e ambiental de forma integrada. Hospital de São João, no Porto, quer trazer essa abordagem para mais pessoas.

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O conceito de uma só saúde vê a saúde humana, animal e ambiental de forma integrada Nelson Garrido
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Lembra-se de ter sido questionado pelo médico de família sobre animais de estimação? A não ser que esteja grávida ou tenha sofrido uma mordida do animal, é bem possível que não, já que essa informação não tem de constar no historial dos utentes. Também é raro ficar registado se a água lá de casa é da companhia ou do poço, se consome charcutaria de produção artesanal, se vive perto de uma quinta ou de uma bouça. Mas, para os clínicos do "One Health São João", grupo que nasceu este ano no Hospital de São João (HSJ) dedicado ao conceito de "uma só saúde", esse tipo de atenção mais proactiva ao contexto epidemiológico no âmbito da medicina humana é uma mudança necessária, quando sabemos cada vez mais sobre como a saúde de pessoas, animais e natureza está interligada.

"A medicina geral e familiar tem de reconhecer que o animal de estimação faz parte da família", ouvimos da médica Maria Inês Marques, da ARS de Lisboa e Vale do Tejo, convidada a participar na formação "One Health nos cuidados de saúde primários", organizada no início de Julho pelo One Health São João. Falando para um grupo de médicos de família e enfermeiras, explicava que é preciso saber fazer as perguntas certas, porque mesmo os utentes nem sempre reconhecem que todos os animais – de estimação, da quinta e, claro, outros bichos que por aí andam – têm importância para a sua saúde.

Alguns dos médicos presentes reconheceram as situações, muitas vezes caricatas, em que é preciso variar as perguntas até descobrir, por exemplo, se os utentes "iam à terra no fim-de-semana" (onde davam uma ajuda aos familiares com as cabras, ovelhas ou galinhas) ou se tinham feito recentemente uma caminhada por áreas naturais. Sentada num canto da mesa, a médica infecciologista Filipa Ceia, uma das mentoras do projecto, brinca que "os infecciologistas são repórteres de doenças" – no fundo, todos os médicos o são. O problema é que é difícil encontrar aquilo que não se procura, e é assim que muitos casos de doenças de registo obrigatório podem ficar por notificar.

Na formação, ouvimos falar sobre como também as perturbações ambientais têm impacto na saúde humana e animal, não apenas devido às alterações climáticas e aos fenómenos intensos, mas pelos efeitos dessas mudanças nos nossos ecossistemas, potenciando a transmissão das chamadas doenças emergentes. A covid-19, aliás, foi um grande sinal de alerta sobre como é preciso redobrar esforços para conter a transmissão das chamadas zoonoses – doenças que se transmitem entre animais e humanos –, reforçar a vigilância para identificar os surtos atempadamente e, caso se queira mesmo ir à raiz do problema, repensar a forma como cuidamos do planeta e conservamos a biodiversidade.

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"Controlar doenças na saúde animal ajuda no controlo de doenças nos humanos", explica a médica Filipa Ceia.

"Uma só saúde"

A médica infecciologista Filipa Ceia, uma das mentoras do projecto, sabe bem o que é fazer horas extra por esta causa. Há alguns anos, começou a "espevitar" alguns médicos e enfermeiros do HSJ interessados nos tópicos de saúde global e no conceito de "One Health" e passaram a pesquisar e a aplicar esta abordagem, que vê a saúde humana, animal e ambiental de forma integrada. "Vamos fazendo o que conseguimos com a nossa carolice", brinca a clínica, que antes de estudar medicina humana já era médica veterinária.

Em 2019 começaram "a trabalhar em sonhos e projectos", mas com a pandemia os esforços do grupo tiveram de abrandar, numa altura em que o Serviço Nacional de Saúde dava tudo para cuidar das vítimas da covid-19. Passada a tempestade, foi finalmente altura de retomar os esforços e tornar o grupo oficial: nasceu, no início deste ano, o One Health São João.

O plano da equipa, agora integrado na estratégia do HSJ, passa por levar o conceito de "One Health" aos diferentes grupos que ainda não estão mas deviam estar em comunicação: alertar médicos, em especial os da medicina geral e familiar, sobre as doenças emergentes, em particular as tais zoonoses; sensibilizar veterinários para manterem alguns cuidados e fazerem recomendações aos seus clientes para limitar ao máximo a transmissão de doenças entre animais e humanos; colaborar com autoridades ambientais para manter a comunicação a fluir; e trabalhar com a população da região para apostar na literacia de saúde.

No ano passado, o grupo pôs no terreno um projecto-piloto para trabalhar com escolas no Porto, no qual crianças e adolescentes aprendiam de que forma a saúde das pessoas, dos animais e da natureza estão ligados e faziam exercícios práticos, como imaginar a vida dos animais selvagens ou montar um plano de abordagem em caso de uma zoonose.

Estamos preparados para a próxima pandemia?

Outro dos grandes problemas que fazem parte do universo One Health é a resistência a antimicrobianos. Há vários factores por trás deste problema, incluindo o uso pouco prudente de antibióticos para tratar doenças em que bastariam tratamentos mais leves, mas o grupo One Health São João está também preocupado com problemas a montante: o uso excessivo de antimicrobianos na agricultura e em particular na indústria agroalimentar, aplicando estes químicos indiscriminadamente (mesmo em animais saudáveis), tentando garantir mais produção, mas criando resistências que são depois transmitidas aos consumidores.

O assunto não é novo em Portugal, estando já abordado no Plano Nacional de Combate à Resistência aos Antimicrobianos 2019-2023, coordenado em conjunto pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), da Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) e da Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

Um dos grandes desafios da abordagem One Health, explica a médica infecciologista, é colocar as três áreas saúde humana, animal e ambiental em comunicação. No topo da sua lista de desejos está a criação de um registo epidemiológico "que funcione em uníssono para todas as áreas" ou seja, com comunicação entre as bases de dados da DGS, DGAV e APA , ao invés de ter dados que só podem ser cruzados quando são lançados os relatórios anuais. "Isso é insuficiente", lamenta a médica.

"O que é que estamos a fazer para preparar para a próxima pandemia?", perguntava de forma provocadora Filipa Ceia, no remate da formação com médicos e enfermeiros. As respostas foram titubeantes. Uma enfermeira já suspirava numa espécie de cansaço antecipado, entre o esforço de convencer os directores a alinhar na empreitada e o desgaste de nem sempre se conseguir cumprir os planos. As dificuldades são várias numa área que ainda não é considerada prioritária. Mas a médica não tem medo das horas extra que serão necessárias até que o conceito seja enraizado nas práticas de saúde. "Ter um plano é sempre melhor do que não o ter", encorajou, confiante.

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