A pandemia é o “maior grito de alerta” para a falta de saúde planetária

Proteger e investir na natureza é a “melhor e mais barata vacina” que poderemos ter contra futuras pandemias. Na recuperação desta, o foco deve ser um “mundo construído para a resiliência” — e não (só) para o crescimento. Cientistas defendem que o primeiro passo é proteger 30% do planeta até 2030.

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A desflorestação na Amazónia: os terrenos são usados para cultivar soja ou para agro-pecuária. Nacho Doce/Reuters

Para prevenir a próxima pandemia, a relação dos humanos com a natureza tem de mudar “ontem”. “Precisamos de começar a proteger a natureza ontem”, defende David Quammen. “Uma das coisas mais importantes a reter desta pandemia é que não é um acontecimento único. É parte de um padrão que reflecte coisas que estamos a fazer. Nós perturbamos estes ecossistemas selvagens e ao destruí-los é como se estivéssemos a sacudir os vírus das árvores.”

O que o autor de Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic (2012) quer mostrar é que o surgimento de novas doenças com o potencial pandémico de matar centenas de milhares de pessoas não é causado “por algumas pessoas na China que poderão querer comer um pangolim”, o animal selvagem mais caçado do planeta (e que, não por coincidência, está em risco crítico de extinção). “Isto envolve as escolhas que todos fazemos”, diz o norte-americano que escreve sobre ciência e natureza. “Os vírus não têm intenção. Não têm propósito. Apenas aproveitam uma oportunidade.”

Por outro lado, há 200 mil anos que os humanos fazem mais do que aproveitar uma oportunidade: com mais intenção e tecnologias poderosas agora que somos uma espécie com 7,7 mil milhões de indivíduos. “Nós somos muito bons a arrogar todos os recursos do planeta. Capturamos animais selvagens, ou matámo-los para comida. Cortamos o seu habitat. Deitamos abaixo florestas para madeira”, enumera. “Ou entramos lá para explorar minerais estratégicos como coltan [contracção das palavras columbite e tantalite]”, presente nos telemóveis e no computador que usamos para a conversa à distancia com Quammen e Enric Sala, dois autores e exploradores da National Geographic, que falavam aos jornalistas a propósito da campanha campaignfornature.org.

Para Sala e os assinantes da petição que exige um compromisso dos líderes mundiais para proteger pelo menos 30% da terra e dos oceanos, até 2030​, a “coisa mais cara que podemos fazer é voltar à normalidade”. “Fenómenos climáticos extremos, desastres naturais e perda da biodiversidade representam agora o maior risco para a nossa economia global”, salienta. Em Janeiro de 2020, e pela primeira vez, os participantes na avaliação anual do Fórum Económico Mundial consideram que os riscos com maior probabilidade de afectarem o mundo na próxima década são todos ambientais​. “Os benefícios económicos de proteger a natureza ultrapassam por muito os custos. E esta pandemia tornou isso muito claro: sem pessoas saudáveis e a poderem ir trabalhar em segurança, a economia colapsa. E pessoas saudáveis, como vemos, dependem de uma relação saudável com o mundo natural. Por isso, proteger a natureza tem de ser incluído na recuperação económica e nos pacotes de estímulos fiscais. Acredito que proteger a natureza é a melhor vacina que temos.”

Foi para falar nessa “outra emergência” que, em Portugal, a comunidade de jovens Lidera se reuniu com o ministro do Ambiente, a 14 de Maio. Numa carta aberta, milhares de jovens portugueses exigem uma “recuperação sustentável pós covid-19”, desde a criação de empregos verdes à preservação de ecossistemas e ao fim dos subsídios aos combustíveis fósseis. 

A crise provocada pela pandemia do SARS-CoV-2, que já vitimou mais de 300 mil pessoas por todo o mundo, é um “sintoma” das outras crises para as quais cientistas e ecologistas como Eric Sala e David Quammen têm vindo a alertar. “Este coronavírus, esta pandemia, foi a maior chamada de atenção, que afectou cada indivíduo neste planeta”, defendem. Chegou o momento, avisam, de trazer para a mesma sala de reuniões (ou para a mesma chamada de Zoom) cientistas que estudem as alterações climáticas, a perda de biodiversidade e especialistas em saúde humana, sob o conceito de “uma só saúde planetária”.

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Um homem indígena reage em frente a uma área destruída da floresta da Amazónia. Reuters

“Espero que agora entendamos que não há saúde humana separada da saúde ambiental. É tudo uma só saúde porque os humanos são animais e estamos conectados ao mundo natural de muitas formas, uma delas é que partilhamos doenças com eles”, explica Enric Sala. “A prioridade é cuidar das pessoas que precisam, mas isto é responder à pandemia. O primeiro passo, o que podemos fazer para resolver as crises da saúde, da biodiversidade, e também mitigar as alterações climáticas, é não provocar danos.”

“Há alguns governos visionários, como o dos Países Baixos, que já começam a pensar em construir para a resiliência. O problema é que o mundo tem vindo a ser construído para o crescimento, não para a resiliência. Temos vindo a venerar o crescimento do PIB, que é uma medida muito má da prosperidade humana porque não mede o quão saudáveis as pessoas são, o quão satisfeitas estão. Foca-se maioritariamente na produção. Proteger florestas intactas não aumenta o PIB, mas cortar essa floresta e vender a madeira sim, o que não faz qualquer sentido”, defende Sala. “Quando controlarmos esta pandemia”, acrescenta David Quammen, “quando quer que isso aconteça, devemos celebrar durante cinco minutos e depois começar a planear para a próxima”.

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