O legado de António Costa

Foi um primeiro-ministro incompetente. Prejudicou a economia frágil do país e criou um ambiente crispado. Não soube gerir a maioria absoluta, rodeando-se de uma equipa que gerou casos atrás de casos.

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Não acredito que António Costa seja corrupto. Com a mesma ingénua bonomia com que não viu, ou não quis ver, os desvarios de Sócrates, sendo o seu braço direito, acredito que se deixou rodear de uma teia de interesses, de lobistas sem escrúpulos, que acabaram por fazer ruir a incompetente governação socialista destes últimos anos.

Mas não posso esquecer certos feitos nada ingénuos de que foi protagonista. Foi e é um político ambicioso que não hesita em amesquinhar o seu adversário, humilhando-o até, recorrendo a argumentos pouco sérios, por vezes falsos, nada recomendáveis para o que deveria ser uma salutar convivência democrática entre atores da política. A forma implacável como destruiu a carreira política de António José Seguro, como humilhou no Parlamento Passos Coelho, de forma por vezes sádica, e posteriormente Rui Rio, demonstram que, sob a capa de um bonacheirão otimista, se esconde um animal político frio, calculista, jogando no xadrez político as peças sempre a seu favor.

Foi um primeiro-ministro incompetente. Numa primeira fase, amarrado à conveniência de uma jogada de verdadeira tomada de poder – refiro-me à criação da chamada "geringonça" – prejudicou gravemente a economia frágil do país e criou um ambiente crispado, um país partido a meio e socialmente desagregado. Não soube gerir a maioria absoluta, rodeando-se de uma equipa que gerou casos atrás de casos.

Titubeou face aos dossiers “quentes”: TAP, no qual se mostrou um malabarista desastroso, esbanjando milhares de milhões de dinheiros públicos para satisfazer agendas ideológicas e partidárias. No novo aeroporto, aumentando a entropia ao criar uma nova comissão, ao fim de dezenas de anos de discussão.

No Serviço Nacional de Saúde, criando uma comissão executiva, paralela ao ministério, cujos objetivos nunca foram claros (demoraram um ano a ser aprovados!) e que agravaram uma situação já de si altamente precária.

Na Efacec chega-se ao descaramento de fechar um negócio pagando ao comprador milhões de euros – que dia feliz para o país! Se o ridículo gerasse fortuna, seriámos com toda a certeza um país muito rico!

Falhou e piorou a situação de uma boa parte dos objetivos programáticos com que foi eleito: médicos de família, salários lamentavelmente baixos, impostos incrivelmente altos, esmagamento da classe média, economia anémica, etc. Todos os índices pioraram: pobreza, desemprego jovem, crise da habitação, aprendizagens irrecuperáveis, desmantelamento do SNS e muitos outros.

Não teve coragem, nem equipa, capaz de implementar qualquer reforma estrutural (na Justiça, Saúde, Educação, Habitação, etc.). Diga-se que não foi o único. Fala-se muito das referidas reformas, mas poucos têm discernimento, independência e isenção para as desenhar, sem ter que enfrentar o coro das vozes habituais de contestação endémica. De facto, não é fácil reformar o que quer que seja neste país, sem ter que enfrentar interesses, cada vez mais egocêntricos, das várias corporações classistas, que se instalaram desde há muito, e que têm sido responsáveis pelo clima de confronto social a que assistimos.

Não faltam exemplos: Fenprof, com o eterno Mário Nogueira; e o recém-chegado André Pestana, com o slogan professores a lutar também estão a ensinar”, tendo como pano de fundo cartazes indecorosos de ministros com olhos perfurados, forma de caricatura que nenhum professor admitiria aos seus alunos; Fnam (Federação Nacional de Médicos) e SIM (Sindicato Independente dos Médicos) com os seus líderes a reivindicar 30% de aumento salarial, redução de horário semanal, o que significaria na prática um aumento de mais de 40%, sentenciando de morte o SNS, esquecendo o juramento de Hipócrates, e aceitando com inesperada insensibilidade as consequências que se traduzem em filas imensas nos postos de saúde e hospitais, a que recorrem os que não têm voz nem alternativa.

A rede de hospitais privados não tem parado de crescer, bem como as empresas de prestação de serviços (os chamados tarefeiros). Tudo isto à custa da degradação do SNS, seguros de saúde mais acessíveis e oferta de condições remuneratórias inacessíveis a um Estado pobre. Médicos em cuja formação o Estado gastou milhares são um bem sujeito às leis do mercado, à livre e desenfreada concorrência, num negócio altamente rentável em que se transformou a saúde. Se não existisse ADSE para milhares de funcionários públicos, já há muito que os problemas do SNS estariam resolvidos…

A nível da Educação o regresso em força dos auto-intitulados “cientistas da Educação”, que têm sido um dos principais responsáveis pela desagregação da escola pública, cada vez mais facilitista, com resultados falseados, com total irresponsabilização dos alunos, que têm desculpa para tudo, incluindo a sua crescente insolência, indisciplina e arrogância. Professores desautorizados, humilhados por alunos, por salários insultuosos, sobretudo para os professores deslocados. E agora com o deslumbramento das novas tecnologias, Inteligência Artificial e muitos projetos de “faz de conta” que têm produzido uma multidão de iletrados, sem qualquer tipo de curiosidade intelectual, impreparados, quer técnica quer eticamente, para construírem uma sociedade melhor. A “geração mais bem preparada de sempre”, slogan da governação socialista, é um autêntico flop.

E o que nos reserva o futuro, com uma oposição completamente anémica, com um líder, digamos, “pipi”, com uma extrema-direita a crescer em terreno fértil criado pela desgovernação socialista? Aliás o PS e António Costa foram os responsáveis pelo crescimento acentuado da extrema-direita. Porque isso servia os interesses eleitorais, ao encostar os partidos de centro ao Chega. Relembre-se o papão que agitou, desvirtuando as intenções (diga-se, não completamente claras) de Rui Rio, colando-o ao Chega.

O capitalismo liberal, representado pela IL, não oferece alternativa capaz de criar uma sociedade mais redistributiva, mais justa. Capitalismo liberal e democracia não ligam muito bem, na minha opinião, a não ser para alguns. Se queremos uma sociedade completamente neoliberal, então convém esquecer o socialismo democrático ou até a social-democracia. Estas só vingarão, com lideranças políticas de alta estatura moral e coragem para regular a ambição e o egoísmo do liberalismo.

Desenha-se no horizonte, com uma alta probabilidade, a perspetiva de uma nova "geringonça", se Pedro Nuno Santos ganhar as eleições internas no PS. Neste caso, teremos mais uma vez um país desgraçadamente adiado, cujo desígnio parece ser o prolongamento de um lento estertor.

Termino com um voto otimista – que José Luís Carneiro ganhe as diretas do PS, tenha a coragem de fazer uma drástica limpeza ao aparelho partidário, se faça rodear de gente séria, sensível e competente (independentes, de preferência, com conhecimento profundo do “país real”), e submeta um projeto político que nos faça acreditar que ainda há futuro para este país.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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