O princípio da surpresa

Não sei quais as informações de que as instâncias das magistraturas e de investigação criminal dispõem. Temo que haja alguém que não está a medir adequadamente a consequência dos seus atos.

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Em democracia, a demissão de um primeiro-ministro motivada por processos de investigação criminal é rara e extremamente grave. Além dos impactos conjunturais, pode ter consequências sistémicas de longo prazo. Vivemos momentos de altíssima incerteza e de transformações radicais no modo como os processos democráticos geram decisão. Passado o período das fidelidades partidárias “para a vida”, os partidos estão permanentemente expostos à volatilidade do juízo dos cidadãos espetadores: estes, na sala da sua casa e noutros locais recatados, solitária e silenciosamente, formam opinião em frente dos ecrãs da televisão, do computador ou do smartphone. No dia das eleições, ludibriando as sondagens, disparam o seu voto. Este é cada vez menos movido por ideologia, identificação grupal, fidelidade ou apreciação racional de alternativas políticas.

Por vezes acontecimentos triviais (a divulgação de uma conversa telefónica embaraçosa ou de casos amorosos, uma frase desinspirada, um caso judicial) são a gota decisiva. Alguns partidos socialistas europeus, aliás, têm sido as vítimas mais salientes desta gelatinidade da opinião pública. Em França, na Grécia, na Itália ou na Hungria, entre outros, partidos antes centrais no sistema político estão desde há anos acometidos de irrelevância persistente. Ainda não encontraram cura para isso. Os seus eleitores tradicionais simplesmente perderam a paciência, divorciaram-se das suas fidelidades tradicionais e não retornam. Em contrapartida, os extremismos têm crescido à conta da exasperação democrática.

É por isso que o modo como os acontecimentos se têm precipitado nos últimos dois dias me deixa perplexo e apreensivo. À cabeça, devo fazer uma declaração: conheço António Costa há mais de 40 anos e acho praticamente impossível que tenha qualquer envolvimento em atos ilícitos de tráfico de influências, de corrupção ou outros referidos no comunicado. Creio, todavia, que não é essa opinião preconcebida que me leva a pensar que o fundamento da demissão do primeiro-ministro, assente numa frase enigmática de um comunicado apócrifo da Procuradoria-Geral da República, é muito frágil (nada dizendo, porém, sobre outros envolvidos).

Não sei quais as informações que o Presidente da República possui. Se são apenas as que transparecem do comunicado, é muito possível que a aceitação da demissão do primeiro-ministro (já publicitada mas, que se saiba, ainda não formalizada e, portanto, ainda não eficaz) tenha sido apressada.

Não sei quais as informações de que as instâncias das magistraturas e de investigação criminal dispõem. Mas, se são apenas aquelas que se insinuam no referido comunicado, temo que haja alguém nesses círculos que não está a medir adequadamente a consequência dos seus atos e a atuar de acordo com critérios de prudência institucional que a situação exige.

Por princípio, deveriam ser convocadas eleições antecipadas para o momento mais próximo possível. No meu entender, interrompendo, inclusive, o processo de aprovação do orçamento. Em situações de crise, a salvaguarda das instituições democráticas e a reiteração da sua capacidade de regeneração faz-se devolvendo a palavra ao povo na primeira ocasião possível. Todavia, dada a peculiaridade da situação e a eventual inconsistência dos motivos que levam à demissão do primeiro-ministro, pode justificar-se uma solução transitória que dê tempo a melhor esclarecimento e que obste a passos radicais de que nos podemos arrepender daqui a algum tempo.

Se o rolo compressor da pressão mediática e da urgência da decisão não permitirem que se pare para pensar, os partidos terão pouco tempo para se preparar. O PS e o PSD (que não está pronto, por mais que diga que está) enfrentam descomunais desafios. No caso do PS, depois de surpreender pela negativa, tem de surpreender pela positiva. A única forma de amenizar as surpresas irremediavelmente negativas dos últimos tempos é surpreender pela positiva. O desafio do PS só pode ser vencido pelo regresso simbólico do Partido de Mário Soares, com rosto rejuvenescido e uma frescura capazes de surpreender e de recuperar os eleitores desavindos pela ação de uma maioria absoluta que ficou aquém das expetativas e das necessidades. A incógnita é se o consegue com meras soluções de continuidade e com os protocandidatos anunciados, ou se tem de olhar mais longe.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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