Falta dinheiro para nos adaptarmos aos efeitos das alterações climáticas

Relatório da ONU diz que necessidade de financiamento dos países em desenvolvimento para adaptação é dez a 18 vezes superior ao que existe.

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Cheias no Paquistão, em 2022, um fenómeno meteorológico extremo que foi relacionado com as alterações climáticas NADEEM KHAWER/LUSA
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É um paradoxo: o Verão passado mostrou-nos que os impactos das alterações climáticas se estão a tornar cada vez mais claros, atingindo recordes de temperatura em todo o mundo. Mas o dinheiro e o esforço canalizado para planear a adaptação às consequências do aquecimento global, que podem ser secas, grandes incêndios e inundações, está a diminuir, e fica muito aquém do que seria necessário, diz o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA).

O relatório Lacuna de Adaptação 2023 (Adaptation Gap), lançado nesta quinta-feira, faz uma actualização dos números e chega à conclusão de que a necessidade de financiamento dos países em desenvolvimento é dez a 18 vezes superior aos financiamento internacional dedicado à adaptação às alterações climáticas. Além disso, os custos de tomar as medidas essenciais para ajustar o meio em que vivemos aos efeitos das alterações climáticas são 50% mais elevados do que na anterior estimativa.

A lacuna de financiamento de adaptação é a diferença entre as medidas realmente postas em prática e os objectivos determinados por uma sociedade, que são influenciados pela tolerância que têm a impactos das alterações climáticas, como a seca, e os limites de acesso a recursos bem como a avaliação de outras prioridades de acção.

“A literatura científica é mais negativa”, e também mais fundamentada, explicou, em resposta à pergunta do Azul sobre o que fez elevar os cálculos dos custos, Paul Watkiss, um consultor britânico especializado em adaptação às alterações climáticas e principal autor do capítulo sobre financiamento do novo relatório.

“Em 2016, o relatório da lacuna de adaptação calculava que os custos podiam ir de 140 a 300 mil milhões de dólares (133 a 285 mil milhões de euros) por ano em 2030. Aos preços actuais, isso é equivalente a um valor entre 170 a 360 mil milhões por ano em 2030 (161 a 342 mil milhões de euros), avançou Watkiss.

Estagnação

O relatório tem como subtítulo Subfinanciada e Mal Preparada e avalia a lacuna de adaptação actual num valor que vai de 194 mil milhões a 366 mil milhões de dólares (184 mil milhões a 347 mil milhões de euros). Mas o financiamento internacional disponível para este fim, durante o período 2017-2021, foi de apenas 25 mil milhões de dólares, diz o PNUA. E, em 2021, diminuiu 15% em relação a 2020.

Ao mesmo tempo, parece ter estagnado o planeamento e execução de medidas de adaptação climática. “A acção para proteger as pessoas e a natureza é cada vez mais urgente. Mas à medida que as necessidades estão a aumentar, a acção está a estagnar”, disse o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, citado num comunicado de imprensa do PNUA.

“Há uma ligação clara entre a adaptação e a questão das perdas e danos. A falta de medidas de adaptação tem um grande impacto nos custos de desastres relacionados com as alterações climáticas”, afirmou Henry Neufeldt, o editor principal do relatório da Lacuna de Adaptação de 2023, numa conferência de imprensa transmitida online.

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Inger Andersen, directora executiva do PNUA SALVATORE DI NOLFI/EPA

“Mas é importante que esta questão não seja abordada como um jogo de soma zero: os fundos para adaptação não devem ser canalizados para um fundo de perdas e danos, nem vice-versa”, salientou Neufeldt.

Este ano, pela primeira vez, o relatório da Lacuna de Adaptação inclui uma parte dedicada às perdas e danos – por causa do acordo obtido na cimeira do clima das Nações Unidas do ano passado, no Egipto, a COP27, para que se iniciassem negociações para criar um fundo para ajudar os países mais vulneráveis quando sofrem desastres relacionados com as alterações climáticas. Não tem havido grandes progressos, e a questão estará de novo em foco na cimeira deste ano, a partir de 30 de Outubro, a COP28, desta feita no Dubai.

“Encontramo-nos numa situação desconcertante: ao mesmo tempo que reconhecemos que as alterações climáticas são o maior multiplicador de riscos – 90% dos desastres em alguns países são fenómenos meteorológicos extremos –, o financiamento das acções de adaptação e mitigação [redução das emissões de gases com efeito de estufa] são insuficientes”, afirmou Loretta Hieber Girardet, responsável do Gabinete das Nações Unidas para a Redução dos Riscos.

“Temos de operacionalizar o fundo de perdas e danos e a Rede de Santiago, que até agora não avançou”, disse Girardet, referindo-se ao projecto lançado na COP25, em Madrid, de criar uma rede para ligar países em desenvolvimento vulneráveis às alterações climáticas com recursos técnicos e científicos necessários para lidar com os impactos que estão a sofrer.

Captar investimento privado

Há uma clara necessidade de aumento do financiamento, e de reestruturação daquele que existe. Está, aliás, a ser discutido um novo objectivo para o financiamento climático, pós 2025. O objectivo de arrecadar 100 mil milhões por ano para mitigação e adaptação dos países mais vulneráveis nunca foi alcançado. Mas o PNUA propõe que a nova meta deve aumentar significativamente, para levar em conta a necessidade de aumentar as verbas para adaptação.

Só a correcção da inflação levaria a actualizar os 100 mil milhões de dólares anuais para 139 mil milhões, diz o relatório. Mas devem ser levadas em conta as necessidades dos países em termos de adaptação.

“Em 2023, as alterações climáticas tornaram-se mais destruidoras e mortíferas: foram batidos recordes de temperatura e houve tempestades, cheias, ondas de calor e incêndios florestais. Estes impactos cada vez mais intensos dizem-nos que o mundo deve cortar urgentemente as emissões de gases com efeito de estufa e aumentar os esforços de adaptação para proteger as populações vulneráveis. Nenhuma destas coisas está a acontecer”, disse Inger Andersen, directora executiva do PNUA.

“O financiamento público internacional nunca será suficiente”, sublinhou Ibrahim Thiaw, secretário executivo da Convenção das Nações Unidas para o Combate da Desertificação, na mesma conferência de imprensa. O relatório mostra que mesmo que se duplicasse o montante do financiamento para a adaptação em 2025, apenas se reduziria em cinco a dez por cento a lacuna actual.

“Temos de pensar seriamente em apresentar a adaptação como uma oportunidade de negócio, de investimento para as empresas privadas”, salientou Thiaw. “Porque a adaptação não é um assunto que só interesse aos países em desenvolvimento, é para o mundo inteiro”, concluiu.

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