Paddy Cosgrave, de unicórnio a sujeito político

O CEO da Web Summit sentiu na pele uma coisa que alguns de nós sabemos de ginjeira: existe um consenso estabelecido no que diz respeito à guerra no Médio Oriente e que protege a posição de Israel.

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“Os crimes de guerra são crimes de guerra mesmo quando cometidos por aliados.” Esta foi a frase que Paddy Cosgrave escreveu na rede social X e da qual muito se arrependeu. Ainda pediu desculpa, mas de pouco serviu. O mal estava feito.

O embaixador de Israel em Portugal, Dor Shapira, apressou-se a classificar de “ultrajantes” as declarações de Paddy, anunciou que Israel já tinha cancelado a sua presença na Web Summit e apelou a todas as empresas que fizessem o mesmo. Foi ouvido. Algumas das maiores empresas do mundo – como a Google, a Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp), a Amazon ou a Siemens – fizeram saber que não compareceriam no evento. Também o vice-chanceler e ministro da Economia alemão, Robert Habeck, disse estar a ponderar cancelar a sua participação.

Digo que foi ouvido porque as declarações do CEO da Web Summit, só por si, não tinham potencial para gerar esta reação junto das empresas e instituições. Foi a diplomacia israelita que o conseguiu. Apontou o dedo a declarações que não tinham nada de extraordinário e partiu para o apelo ao boicote. O que se passou a seguir foi uma verdadeira demonstração de poder e uma verdadeira demonstração da sintonia entre o grande capital das tecnologias e o Estado de Israel.

A dimensão do boicote foi avassaladora. De tal forma que se chegou ao ponto em que ir ao evento poderia ser interpretado como um ato de apoio à Palestina ou – como sabem, isto é quase automático – ser visto como um ato antissemita. Foi este o efeito do apelo da diplomacia israelita: transformou um passeio de unicórnios pelo mundo encantado dos milionários da tecnologia num ato político radical. Houve de facto uma inversão do que costuma acontecer nestas situações. Quem fez o apelo ao cancelamento não representava o elo mais fraco, mas sim uma estrutura de poder político, institucional e económico, esmagadora.

O próprio Paddy Cosgrave terá sido surpreendido. As pessoas não costumam arriscar aquilo que não querem perder. Não lhe terá passado pela cabeça as graves consequências das suas suaves palavras. Sentiu na pele uma coisa que alguns de nós sabemos de ginjeira: existe um consenso estabelecido no que diz respeito à guerra no Médio Oriente e que protege a posição de Israel.

Esse consenso não quer saber da ocupação nem de décadas de opressão. Também não quer ouvir falar em crimes de guerra ou em defesa desproporcionada e, ainda menos, em genocídio. E não se condói com a pobreza, a miséria e a morte dos palestinianos. É um consenso seletivo e caprichoso.

O futuro de Paddy Cosgrave não deve tirar o sono a ninguém e as preocupações que este caso possa suscitar não são com ele. Apresentou demissão para salvar o evento e provavelmente conseguirá. Já a diplomacia israelita pode assinalar aqui uma vitória. E as multinacionais da tecnologia continuarão a faturar nas nossas casas e nos nossos telemóveis depois de terem discordado da ideia de que crimes de guerra são crimes de guerra mesmo quando cometidos por aliados. Entre estes envolvidos não há baixas ou vítimas a registar. Nada para ver aqui.

Deve preocupar-nos a facilidade com que pessoas e organizações que se afirmam defensoras dos valores, princípios e liberdades da democracia os derrubam mal intuem que é preciso. Afirmam-se defensores da liberdade de expressão, mas, ai, Jesus, se o exercício dessa liberdade de expressão por parte de alguém os afecta. Aí, partem para o silenciamento e prepotência. Por outro lado, dizem detestar cancelamentos, mas estão prontos a fazê-los. Claro que podemos ir mais fundo e falar da defesa dos direitos humanos, que posicionam acima de tudo. Mas se forem os direitos humanos de uns desgraçados que vivem na Palestina, já não têm importância nenhuma.

Paddy Cosgrave vivia feliz no vale verdejante dos unicórnios e, já se sabe, quem é feliz não tem história. Desconhecia a ideologia e as orientações das empresas e instituições com as quais trabalha há anos. Não sabia que o capital é sensível e acreditava que era livre para exprimir as suas opiniões. O grande especialista em networking pouco percebia, afinal, da sua rede e do seu próprio posicionamento nessa rede. Prevê-se que esta semana de experiência enquanto sujeito político não o tenha despertado para o ativismo, mas foi um curso intensivo de realidade. E a partir de agora terá uma história para contar.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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