Ric O’Barry: “Os golfinhos sem o mar não estão completos”

Norte-americano foi o treinador de golfinhos da série Flipper. Desde 1970 que luta pela libertação daqueles mamíferos. Neste sábado, vai estar em conversa na Universidade Lusófona, em Lisboa.

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O activista norte-americano Ric O'Barry Daniel Rocha
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Ric O’Barry ficou marcado para sempre quando Kathy parou de respirar e morreu nos seus braços. Kathy era uma das cinco fêmeas que faziam de Flipper, o golfinho mais famoso da década de 1960, que dava nome à série de televisão que tornou aquela espécie tão famosa. O norte-americano trabalhava num parque zoológico em Miami e era o treinador daqueles mamíferos marinhos.

Ao longo dos anos, foi ganhando consciência de que aqueles animais pertenciam ao mar e não deviam estar cativos. A partir de 1970, depois do que viveu com Kathy, tornou-se activista. Libertou dezenas de golfinhos em cativeiro, foi detido várias vezes, criou a organização Dolphin Project para proteger os golfinhos a nível mundial e, apesar dos seus 84 anos, continua activo a defender refúgios para os golfinhos em cativeiro.

Em 2009 ficou mais conhecido por surgir no documentário The Cove – A Baía da Vergonha, dirigido por Louie Psihoyos, que no ano seguinte ganhou o Óscar. O filme mostra a actividade que ocorre perto da povoação de Taiji, no Japão, onde todos os anos os pescadores daquela povoação prendem com redes grupos de golfinhos. Parte é capturada para o comércio internacional. O resto é morto naquelas águas e a carne é usada para alimento.

O filme vai ser apresentado este sábado ao início da tarde, na sala de cinema Fernando Lopes, na Universidade Lusófona, integrado numa sessão de esclarecimento promovida por Laurentina Pedroso, provedora do animal, que está a lutar por nova legislação para proteger o bem-estar dos 33 golfinhos em cativeiro em Portugal (no Jardim Zoológico e no Zoomarine Algarve).

“Quando se pensa nos 33 golfinhos em Portugal, eles fazem parte de uma indústria de milhares de milhões de dólares”, diz Ric O’Barry ao PÚBLICO, numa conversa que ocorreu naquela sala de cinema. “Este filme é uma ameaça à indústria.”

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Desde 1970 que Ric O'Barry trabalha para libertar golfinhos do cativeiro Daniel Rocha

Porque é que é importante proteger os golfinhos?
Porque eles merecem a nossa protecção e respeito. Não se aprende a respeitar golfinhos dentro de um edifício, a fazer truques idiotas. Estamos a explorá-los até à morte em nome da educação, da investigação e da conservação. Quando trabalhei nas zonas dos golfinhos no Miami Seaquarium, era o treinador responsável e treinei a minha equipa para mentir ao público: “Estamos aqui para educarmos, investigarmos e conservarmos.” É tudo treta. Estão ali para mostrarem alguns truques pelo dinheiro. E naquela altura era ok, mas os tempos mudaram e acho que o The Cove fez os tempos mudarem.

O documentário está a ajudar a mudar a realidade de Taiji?
Não, isso não aconteceu. Mas trouxe consciencialização. Não é possível fazer-se algo se não se estiver consciente. Houve muitas pessoas que se tornaram conscientes sobre o que se passava e deram um passo em frente. Num parque zoológico na Suécia, eles pararam os espectáculos. Em França também.

Quando se pensa nos 33 golfinhos em Portugal, eles fazem parte de uma indústria de milhares de milhões de dólares e este filme é uma ameaça à indústria. A palavra santuário é uma ameaça para eles. Eles querem apenas que se compre o bilhete, se veja o espectáculo e se vá embora. Que venha o próximo grupo. É assim que funciona. O nosso trabalho é educar o público esperando que eles pensem duas vezes antes de comprarem o bilhete. A solução é parar de comprar bilhetes.

A indústria é a razão para que aquela actividade ocorra todos os anos em Taiji?
Acabei de vir de Taiji. Asseguro-lhe que é a única razão. Eles já não os matam pela carne. O combustível que usam para os carros custa mais do que aquilo que eles fazem com a carne. Um golfinho morto vale 500 dólares [470 euros]. Um golfinho vivo que vai para o Dubai custa 200.000 dólares [182.000 euros].

Mas os pescadores de Taiji argumentam que aquela é uma actividade tradicional com séculos de história.
É uma mentira. Não é a tradição deles. Nunca foi a tradição deles capturarem golfinhos e vendê-los para parques zoológicos.

Mas para comer.
Quando falam da tradição, estão a falar da caça à baleia tradicional numa canoa em Taiji. Eles iam dez a 20 homens com arpões. Isso era tradicional. O que fazem agora é que com barcos mecanizados, isso não é tradicional.

Isso começou por causa da série de televisão Flipper, era a série de televisão mais popular no Japão. E criou todos estes parques zoológicos. Antes do Flipper, esta não era uma indústria de milhares de milhões de dólares. Quando comecei a trabalhar no Miami Seaquariam, havia apenas três parques com golfinhos no mundo. O Flipper fez com que toda a gente quisesse ter um e criou esta enorme quantidade de capturas.

Porque é que começou a trabalhar com golfinhos?
Fui trabalhar para o Miami Seaquarium como mergulhador. Tinha 21 anos. O primeiro dia de trabalho foi num barco para capturar golfinhos. Depois, capturei muitos golfinhos para a Feira Mundial de Nova Iorque, para parques que abriram na Europa. Porque toda a gente queria ver o Flipper. É por isso que me sinto responsável.

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Golfinhos no rio Sado, perto de Setúbal NELSON GARRIDO

Como era o dia-a-dia no aquário?
Tínhamos um tanque de 500.000 galões [perto de 1,9 milhões de litros], muito maior do que este edifício e parte do espectáculo era um mergulhador nadar no fundo do tanque e todas as pessoas viam o que acontecia pelo vidro. Vou caminhando com o escafandro, tenho um grande cesto de peixes e vou alimentando tubarões, tartarugas, golfinhos. Todas estas criaturas. A ignorância é uma bênção. Era um trabalho óptimo até me aperceber deste animal que olha para mim e tem um cérebro maior do que o meu. Eu vivia no Seaquarium com os meus cinco golfinhos Flipper.

Cinco fêmeas...
Todas fêmeas porque durante as filmagens elas não têm erecções. Por isso, o Flipper na verdade é uma fêmea, não um macho. Sextas-feiras à noite, levava uma televisão com uma longa extensão para que o “Flipper” pudesse ver o Flipper na televisão. Até que pensei “Meu Deus, o que é que estamos a fazer aqui?” Eles [os golfinhos] não deviam estar aqui. Foi quando comecei o activismo. Mas não fiz nada, era só na minha cabeça. Mas depois, a Kathy morreu nos meus braços. Isso foi realmente difícil. Por isso, aqui estou, 50 anos depois, ainda a tentar fazer algo em relação a isso.

Como?
Não estamos a dizer para libertarem os golfinhos. Há 33 golfinhos aqui em Portugal, eles não podem ser libertados para o oceano. Devido àquilo que lhes fizemos, eles não podem ficar livres. Os golfinhos que nasceram em cativeiro, os golfinhos idosos não podem ser libertados. Mas podem ser transferidos para o ambiente mais natural. Os golfinhos sem o mar não estão completos.

Em poucas décadas, será o fim da indústria...
Não. Devido ao aquecimento global, vamos ter mais animais encalhados. Teremos focas, leões-marinhos, golfinhos, baleias que vão dar à costa e morrem. Estes parques zoológicos são quem pode fazer melhor os resgates, porque têm a experiência. É necessário manter esse componente.

Diz que esta é uma questão de educação. Porquê?
Reduzimos estas criaturas magníficas a palhaços de circo. As crianças vão sair de um parque de golfinhos a pensar que este é o lugar onde pertencem, que os golfinhos são isto, que está tudo bem com este tipo de exploração. Enquanto chamarmos isto de educação, investigação e conservação, podemos fazer o que quisermos. Isto não é uma questão apenas relacionada com os golfinhos, é também sobre as mentiras que estamos a dizer às nossas crianças, é um tipo de má educação.

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