Harmonização: que Vinhos Verdes pede a comida de tacho?

Brancos, rosés, tintos, espumantes: há muitos caminhos vínicos para casamentos felizes com os pratos de sabor apurado que a mudança de estação pede. O crítico Manuel Moreira ajuda a encontrá-los.

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Frescura, intensidade, mar, ervas aromáticas, caldo, o arroz de peixe é uma avalanche de sensações a pedir vinhos com energia aromática, fruta, algum corpo e acidez. Rui Gaudêncio/Arquivo Público
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Cozinhar em tacho é preparação popular e antiga. Nela, tudo se aproveita nas longas horas de preparação, e daí resulta uma fusão total de todos os ingredientes. De um dia para o outro, apura ainda mais o seu sabor. Destapar o tacho e ajustar os temperos em improvisações de última hora torna-se desafiante ao vinho ideal.

Arroz de peixe

Na cozinha, o arroz é singular pela habilidade de absorver os mais variados sabores e aromas. É como uma tela em branco para a imaginação fluir sem limites.

A junção dos sabores do peixe fresco, com a textura do arroz, tudo ligado pelo caldo, faz a experiência ganhar contornos de êxtase sensorial. Tudo se torna ainda mais especial se o arroz for carolino português do melhor – é mais caro, mas inegavelmente compensador. Fica a sugestão.

Bivalves e mariscos, ao sabor da inventividade culinária, sublinham a dimensão de maresia e as ervas aromáticas, o perfume irresistível. O tomate, assíduo, acentua a vivacidade do conjunto com a sua acidez.

Frescura, intensidade, mar, ervas aromáticas, caldo, é uma avalanche irresistível de sensações a pedir vinhos com energia aromática, largura de boca assente em fruta e algum corpo com imprescindível acidez. E, acima de tudo, vinhos que se batam com a persistência do tacho. Ou seja, mesmo havendo peixe e marisco, os vinhos leves e frescos, aqui não servem de muito.

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Para o cozido de grão, os vinhos mais colaborantes devem ser aromáticos, com alguma sofisticação e boa estrutura. Rui Gaudêncio/Arquivo Público

Cozido de grão

O cozido de grão é cânone da culinária alentejana, assente no grão-de-bico, uma leguminosa rica em sabor e nutrientes, combinado com uma selecção de legumes e complementada por partes como joelho ou chispe, orelha, rabo, ossos da suã, entrecosto e toucinho, de borrego ou porco. Por fim, a hortelã acrescenta um toque fresco e único ao prato, e que puxa pela sua personalidade.

É servido sobre pão alentejano, mais uma camada acrescentada às restantes camadas, de cores, texturas e sabores, perfeitas para uma mesa compartilhada.

Ao ponderar o vinho que lhe fará companhia, não nos devemos distrair e pensar somente na presença das carnes. Importa atentar as variadíssimas texturas – a crocância do grão e dos legumes, as carnes de diversas firmezas –, o caldo e a hortelã, num todo que mais parece um recreio sensorial.

Os vinhos mais colaborantes devem ser aromáticos, com alguma sofisticação e boa estrutura, sumarentos e acidulados, mas equilibrados, promovendo a ligação a todas as nuances do prato. Para ele, as possibilidades, são inúmeras.

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Espumantes e pét-nat unem o funcional ao informal e são boas escolhas para harmonizar com as moelas. Rui Gaudêncio/Arquivo Público

Moelas

As moelas são um petisco com tanto de informal como de tentação. Seja num restaurante tradicional ou num café local, são uma presença habitual como refeição ou como convivial petisco.

As moelas de frango são as mais habituais. No tacho coram no azeite. Cebola, alho, salsa, louro, pimenta ou o piripíri, é tudo unido pelo vinho, tudo mexido como uma poção mágica no caldeirão. Não esquecer colorau e o inconfundível cravinho.

As moelas são cozidas até à tenra perfeição. Deixar repousar concentra e apura o sabor. Comem-se sobre fatias de pão e, não raras vezes, termina-se a chupar os dedos, que o prazer não se desperdiça. Já o ritual do palito, que extrai moela a moela ao tacho e ao molho, faz durar o prazer.

Apesar da intensidade e do guloso do sabor, para harmonizar o tacho de moelas não é necessário recorrer aos melhores néctares da garrafeira. Aliás, o contexto incita ao informal. A bitola são os vinhos suaves de bom corpo e, obviamente, bem dotados de aroma. Espumantes e pét-nat não são de descartar, unem o funcional ao informal.

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A chanfana é amiga de tintos encorpados, plenos de sabor, ampla fruta, com taninos pronunciados e uma dose de acidez, para complementar o tempero e ressaltar os sabores. Sérgio Azenha/Arquivo Público

Chanfana

A chanfana, representante da cozinha do Centro do país, é, na essência, um assado de cabra velha, cozinhado em caçoilas de barro dentro de forno a lenha.

A carne é imersa numa mistura de vinho tinto, alho, folhas de louro, pimenta, colorau e sal, cozinhada em ritmo pausado, lento e longo, com o recipiente selado a permitir a incorporação dos temperos na carne. Gradualmente, a chanfana vai ganhando profundidade de sabor e textura irresistíveis.

À mesa, acompanhada de batatas cozidas com casca, que absorvem o molho intenso da carne, a chanfana mostra todo o seu esplendor de sabor e aroma. Diz-se que é ainda melhor quando comida no dia seguinte à sua preparação.

Qual o vinho ideal? O que salta à vista é o rico e intenso aroma da chanfana, que a par do robusto e apurado molho, faz não haver grandes dúvidas quanto ao vinho a harmonizar: vinho tinto! Vinhos encorpados, plenos de sabor, ampla fruta, com taninos pronunciados e uma dose de acidez, para complementar o tempero e ressaltar os sabores.

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Este artigo foi publicado no n.º 10 da revista Singular.

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