José Guerreiro: “Os últimos 20 anos já mostram alterações significativas no clima”

Aposta na investigação científica que sirva de apoio aos decisores públicos, à economia do mar e segurança das pessoas e bens. Estes são alguns dos objectivos do novo presidente do IPMA.

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Jose Guerreiro, na grande sala do IPMA onde chegam continuamente dados de várias origens Matilde Fieschi

O biólogo José Guerreiro é presidente do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) desde Junho. Traz uma aposta forte na promoção de investigação científica sobre temas em que a ligação dos oceanos e do clima seja fundamental, e de apoio ao desenvolvimento da economia azul.

Professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, no Departamento de Biologia Animal, e também investigador do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (Mare), é licenciado em Biologia e doutorado em Ecologia e Biossistemática. Sucedeu ao geofísico Miguel Miranda, que se jubilou em Maio, e durante dez anos presidiu ao IPMA, criado em 2012.

José Guerreiro desempenhou, entre 1995 e 2007, diversos cargos públicos, como secretário de Estado do Ambiente do XIII Governo Constitucional e director-geral do Ambiente, entre outros. Os seus interesses em termos de investigação científica têm-se centrado nas áreas de política e governança do ambiente e do mar.

Não é de estranhar por isso que prometa que uma das “grandes frentes de avanço” no trabalho do IPMA será na aquacultura e na biotecnologia. Para encontrar fórmulas de apoio a uma aquacultura cada vez mais sustentável e apoiar o desenvolvimento da indústria do pescado, diz. “É o nosso serviço público.”

É biólogo de formação. Devemos esperar mudanças no rumo do IPMA, como uma maior atenção ao mar?
Eu desempenhei também funções públicas, entre as quais secretário de Estado do Ambiente, com a tutela da meteorologia. Portanto, já conhecia o IPMA.

Não se trata de privilegiar o mar ou a atmosfera, mas de interligar o conhecimento para produzir ciência nova, que sirva o interesse público. O novo desafio do século, até por via das alterações climáticas, é cruzar a investigação nas interfaces entre mar e atmosfera.

Não só no IPMA, mas também em articulação com os centros de investigação. O IPMA é um navio almirante; mas não é uma armada. Precisa dos laboratórios associados, dos centros de investigação. É preciso reforçar a articulação com o sistema científico e tecnológico nacional, de forma a dar as melhores respostas possíveis aos desafios públicos, como a predição de fenómenos climáticos extremos, ou a melhoria das previsões [meteorológicas] de curto e médio prazo. E, simultaneamente, usarmos essa informação para ter uma melhor aproximação à evolução do oceano, o que tem implicações na gestão dos recursos vivos marinhos.

É uma ideia que gostaria de frisar muito: um Laboratório do Estado é um laboratório de referência, que em primeiro lugar serve o interesse público e dá resposta às pessoas e aos interesses do Estado. É essa a nossa missão: prestar serviço público.

Precisamente, o que deve ser um laboratório do Estado dedicado à meteorologia e ao clima nesta época de crise climática?
A série [de dados] dos últimos 20 anos já mostra alterações significativas, com picos extremos muito elevados, que se destacam das séries anteriores. Aliás, já transmiti isto às tutelas: estamos perante um novo normal que tem fenómenos extremos. Tem secas prolongadas. E tem obviamente de ser gerido de acordo com essa normalidade dos últimos 20 anos, que não existia nas três séries anteriores.

Como é que se caracteriza este novo normal, pode dar-nos mais umas luzes?
Caracteriza-se por um aumento já razoável da temperatura média e, sobretudo, picos. Quando se fala nas consequências das alterações climáticas e nos fenómenos extremos, o que é verdadeiramente diferente é a frequência com que ocorrem.

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José Guerreiro quer reforçar a articulação do IPMA com o sistema científico e tecnológico nacional Matilde Fieschi

Há ainda uma área que vamos desenvolver de uma forma mais estruturada, que é o apoio à decisão.

O que será esse apoio à decisão?
Eu já estive no Governo e sei bem quanto é que isto vale. Podem dar-me um relatório de 50 páginas cientificamente e tecnicamente muito bem feito, mas, no final do dia, eu é que tenho de tomar uma decisão.

Estamos aqui a construir um gabinete de governance e relações internacionais que permita disponibilizar aos decisores políticos quadros de decisão para as políticas públicas. Se fizer A acontece isto, se fizer B acontece isto. Não somos nós que tomamos a decisão, mas construímos um quadro de decisões.

Esse é um dos aspectos que terão de ser cada vez mais importantes, num contexto de alterações climáticas?
Sim. Hoje, quando vamos às reuniões sobre a seca, a primeira intervenção é nossa. Não por prosápia, mas porque damos informação técnica de base, para que sobre ela se comecem a construir as decisões.

O IPMA tem uma série de projectos novos em andamento?
Temos um investimento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) bastante avultado [20 milhões de euros com IVA], que permitiu a instalação de novos radares. Os dois dos Açores fecham a rede, será um na região de Ponta Delgada e outro na ilha das Flores. Aproveitando estes novos radares, articulei com o governo regional dos Açores desenvolvermos um Observatório Climático do Atlântico, aproveitando a situação geográfica privilegiada do arquipélago.

Esta centralidade dos Açores no oceano servirá para a observação de uma série de parâmetros relacionados com a alteração do clima. Desenvolvemos também uma tecnologia que nos permite começar a prevenir fenómenos climáticos extremos com uma malha muito fina.

De que forma?
Com um equipamento específico e modelos informáticos associados que pudemos desenvolver porque adquirimos na anterior gestão, e muito bem, o supercomputador [Sistema de Modelação Oceano Atmosfera de Alta Resolução Espacial e Temporal – Atlântico]. Foi um investimento de 1,5 milhões, é PRR.

O supercomputador deu-nos a capacidade de analisar big data, como agora se diz, e aumentou a velocidade de processamento. Não sou perito na matéria, mas um cálculo que demorava uns anos agora demora dois ou três dias. Permite-nos ter previsões actualizadas num período muito curto de tempo e integrar uma maior quantidade de dados, possibilitando também uma previsão mais alargada.

Podemos fazer previsões com uma malha à volta de 2,5 km, mais coisa menos coisa. Isto permite mobilizar meios para os sítios em concreto com alguma antecedência. Aliás, quando houve o furacão Óscar na Madeira — foi o meu segundo dia aqui — conseguimos prevenir a situação com 48 horas de antecedência.

Isso permitiu ao Governo da Região Autónoma da Madeira tomar as devidas medidas e, se quer que lhe diga, choveu muito mais, mas muito mais mesmo, do que tinha chovido na tragédia de 2010 [as cheias de 20 de Fevereiro de 2010, na costa sul, fizeram 51 mortos, 600 desalojados e mil milhões de euros de prejuízos]. Este é o caminho. A área da previsão meteorológica, associada ao clima, deve, em primeiro lugar, contribuir para a segurança de pessoas e bens.

Temos uma linha orientadora muito clara, dar prioridade à capacidade da salvaguarda de pessoas e bens e gestão dos recursos.

Aí enquadra-se também o alerta de tsunamis. Somos um centro regional de alerta de tsunami, foi reconhecido que temos capacidade a nível regional, aliás. Estamos associados ao projecto de instalação de smart cables — as novas ligações continente-Madeira-Açores que vão substituir os antigos cabos de telecomunicações —, que nos permitirão colocar sensores para a sismicidade e, consequentemente, também nos permitem alguma antevisão de tsunamis. Ainda não com aquela antecedência que gostaríamos, mas estamos a investir nesse sentido.

Quando é que isso seria?
O projecto está agora a ser desenhado. O horizonte final ainda não está definido, mas será à volta de 2026/2027. É um projecto liderado pela Infra-Estruturas de Portugal, onde nós temos a componente técnica e científica para a sensorização sísmica.

Mas, no domínio da geofísica, tivemos também algum reforço nas capacidades de análise e previsão da sismicidade. A ciência ainda não está tão desenvolvida como na área do clima, mas estamos a trabalhar nisso. Na Região Autónoma da Madeira, vamos também instalar um centro de previsão de oscilações geomagnéticas, do campo magnético da Terra.

Qual é a aplicação prática dessa previsão?
A aplicação prática é muito simples de perceber. É uma palavra muito complicada para uma coisa muito simples. A oscilação do campo magnético da Terra interfere com as telecomunicações e com os satélites. É tão simples quanto isto.

Articulámos uma colaboração do Governo Regional da Madeira. Estes projectos conjuntos beneficiam da particularidade de termos postos de observação no meio do Atlântico. E na área do mar temos um grande desafio.

Quando estarão prontos estes observatórios nos Açores e na Madeira?
Em dois anos estarão prontos. Talvez menos. Já está inscrito no Orçamento do Governo Regional dos Açores e com Miguel Albuquerque [Madeira] também já está apalavrado. E com o nosso investimento também, portanto, será em joint-venture, creio que em dois anos estariam prontos.

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O navio de investigação Mário Ruivo deve voltar ao mar em meados de Outubro Matilde Fieschi

Os mares nunca estiveram tão quentes como este ano. O IPMA está a fazer algum estudo específico sobre os efeitos desse aquecimento das águas nas pescas e na biodiversidade?
Uma das primeiras instruções que dei, lá está, é um projecto de interface, entre os colegas do clima e os do mar, foi para se cruzarem os dados que temos agora com o supercomputador para tentar perceber a relação do fenómeno El Niño com as variações de stocks [de recursos pesqueiros]. Porque temos as séries necessárias, só que nunca foi feito esse estudo, e estamos no ano certo para fazer isso.

A pergunta científica é se há relação ou não há relação e se há relação, qual é, e qual é o seu efeito. Já temos uns indicadores de que há coisas díspares. Se se encontrar um padrão, em termos científicos, saberemos o seu grau de previsibilidade.

Que projectos tem concretamente na área do mar?
O navio de investigação Mário Ruivo deve voltar ao mar em meados de Outubro. Tem estado no estaleiro, em reparações necessárias e alguma modernização.

Vamos retomar as campanhas oceanográficas e encontrar um mecanismo para abrir o navio à comunidade científica, para que os nossos centros de investigação possam utilizar este equipamento nacional, que não é apenas do IPMA. Sendo eu oficial do ofício, sei muito bem que não há outra maneira de os centros de investigação poderem participar, inclusive em missões sobre o oceano mais profundo, sem utilizar o nosso navio de investigação.

Queremos reforçar, sobretudo, a nossa capacidade de análise da evolução e de gestão dos stocks. Estamos a constituir uma base de dados do IPMA que será aberta à comunidade.

Será uma base de dados sobre os stocks de peixe?
Neste momento, não só fazemos avaliação de stocks, como fazemos a recolha dos parâmetros para avaliar o estado ambiental do meio marinho, vários parâmetros físico-químicos, sistemas de controlo e segurança para a saúde pública, no que diz respeito, por exemplo, aos bivalves.

Vamos também começar a monitorizar do ponto de vista da avaliação dos recursos marinhos nas zonas onde há a chamada pequena pesca e apanha. Nos estuários, nas rias, nas lagoas. Vamos começar a ter séries longas que auxiliem as comunidades locais a gerir o stock. Porque, de facto, não tinha havido, até agora, uma avaliação, por exemplo, dos stocks de bivalves de uma forma continuada. Vamos lançar esse programa de investigação, talvez ainda no final deste ano, que será submetido ao programa operacional Mar 2030, que depende da Secretaria de Estado das Pescas.

Uma das grandes frentes de avanço será na aquacultura e na biotecnologia. Para encontrar fórmulas de apoio a uma aquacultura cada vez mais sustentável. Nós temos a única estação do país pré-industrial, onde se podem fazer ensaios, é a Estação-piloto de Piscicultura de Olhão. Tem lá corvinas de 80 kg. O objectivo central é aumentar cada vez mais o apoio ao sector da indústria do pescado e da aquacultura portuguesa, que é o nosso serviço público. Ainda agora estamos a inaugurar laboratórios novos, em Algés, inclusive um biotério...

Um biotério?
Porque a ideia é, por exemplo, na aquacultura, termos a escala laboratorial, que depois transita para a escala pré-industrial em Olhão, que por sua vez transfere para o tecido industrial. Mas as coisas começam em pequena escala.

Está-se a desenvolver as melhores tecnologias da aquacultura e relacionadas já com o sector industrial, apoiando o tecido industrial português. Mas, ao mesmo tempo, desenvolvendo aproximações mais amigas da sustentabilidade, por exemplo, tentando evitar ao máximo as rações à base de peixe, encontrar os substitutos, diminuir a carga poluente.

Apoiar o desenvolvimento da economia azul, no fundo?
O desenvolvimento da economia e na biotecnologia, a valorização dos subprodutos da pesca, que é importantíssimo. Há duas vantagens: por um lado, reduz-se a carga poluente ou os custos de processamento para resíduos, por outro dá valor acrescentado aos produtos e faz escala com o volume.

Isso leva-nos à biotecnologia azul. Estamos relacionados com todos os hubs de empreendedorismo azuis. Ou seja, o IPMA tem de ser, na nossa visão, a retaguarda e o suporte técnico e tecnológico do Estado, lá está, com a ligação aos centros de investigação e às universidades, ao qual as startups possam recorrer para desenvolver os seus produtos. Ou ter um local onde possam desenvolver os seus produtos.

A cooperação internacional, nomeadamente com os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), é outra linha a desenvolver. Já estabelecemos nos últimos meses cooperação com vários países. Há aqui uma filosofia de cooperação: nós somos a transição para o Atlântico Sul. E, portanto, temos de aproveitar, também com os governos das regiões autónomas, esta situação privilegiada. E, por outro lado, sermos os parceiros privilegiados dos países do Atlântico Norte, França, Espanha, Irlanda, a Alemanha, com quem temos projectos em comum. Podermos ganhar músculo no contexto europeu e trabalhar em conjunto com os países do Atlântico Sul, em particular com os países da CPLP.

E têm pessoal suficiente para fazer todas estas coisas, com toda esta diversidade de áreas?
No sector de meteorologia temos agora 39 concursos abertos para reforçar em termos humanos externos. Não mentiria se dissesse que estamos a recrutar um horizonte de 60 pessoas novas. De diversos níveis. Claro que tivemos as entradas do Programa de Regularização de Vínculos Precários, que foram 142, cerca de 80 investigadores. Eram pessoas que já estavam cá a trabalhar, foi um processo que começou em 2015/2016 e que fechou há dois anos, mais ou menos.

Abrimos agora pela primeira vez o concurso para progressão na carreira de investigadores, que estavam congelados há um quarto de século, pelo menos. E temos mais para abrir. Neste momento temos, no IPMA, números redondos, 550 funcionários espalhados entre as diferentes categorias, iremos para os 600 e pouco. O objectivo é preencher o quadro, a curto prazo.

E claro, temos medidas para aumentar as receitas próprias, com novos produtos e serviços, e não dependemos só do Orçamento do Estado. Na área da formação externa que estamos a reestruturar, porque é uma coisa que nos é pedida muito, em particular pelos países da CPLP, mas não só. Ainda agora, por exemplo, estivemos no Senegal com uma missão governamental. Vários países nessa transição Atlântico Norte-Atlântico Sul pedem-nos know-how e capacitação.

Quanto ao financiamento, neste Verão foi conhecido o resultado de uma auditoria do Tribunal de Contas que dizia que tem faltado financiamento adequado do Orçamento de Estado ao IPMA.
Isso é um aspecto muito particular que tem a ver com os satélites e a rede de satélites [EUMETSAT]...

Nomeadamente, havia um prazo para pagar uma dívida até Setembro...
Ora bem, nós neste momento encontramos um quadro de solução para resolver o passivo que já teve o agrément das tutelas e está neste momento nas Finanças para aprovação. E temos uma resolução do Conselho de Ministros, que nós próprios sugerimos, no sentido de se encontrar uma solução de futuro, que passa, em muito, por uma pool dos beneficiários finais dos diferentes sectores públicos, os usuários directos da informação.

Apresentámos o nosso orçamento para o próximo ano, que será público em breve. Os dirigentes públicos gostariam sempre de ter mais dinheiro, mas isso faz parte. No entanto, tirando esse problema, que está identificado, acho que temos condições razoáveis de funcionamento.

E também temos de fazer pela vida, não é? Ou seja, potenciar os recursos que temos para criar produtos que possam trazer receita. A receita, por sua vez, possibilita a contratação de recursos humanos. Há que ter também essa visão de um serviço público como prestador de serviços. Não só aos organismos e às entidades públicas, mas também a necessidades do sector privado. Como temos na aeronáutica. O serviço é de missão, mas traz receitas próprias ao Instituto. Vamos ver se na área do mar também conseguimos estruturar o que já fazemos para oferecer novos produtos.

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