Ser professor num mundo em mudança

É essencial combater a precariedade, remunerá-los com proporcionalidade, dar-lhes condições e reconhecer que os percursos são mais do que a licenciatura, o grupo de recrutamento e os anos de serviço.

Segundo publicação do INE, os professores pertencem à classe profissional de atividades intelectuais e científicas, não obstante o processo de proletarização a que têm vindo a ser sujeitos, globalmente, ao longo das últimas décadas. Assim, temos assistido à erosão do reconhecimento destes profissionais, fenómeno inversamente proporcional ao acréscimo de exigências com que são confrontados. Ora, no período de confinamento motivado pela pandemia de covid-19, a resposta dada pela generalidade dos docentes para garantir as aprendizagens dos seus alunos e mitigar o isolamento social inverteu essa tendência longa de baixo reconhecimento da classe docente. Mas é sobretudo a escassez destes profissionais nos sistemas de ensino que nos obriga a refletir profundamente sobre a natureza da profissão e a imperativa melhoria das condições de trabalho e de carreira.

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Uma aula no Agrupamento de Escolas de Cuba, Alentejo Rui Gaudêncio

A profissionalidade docente manifesta-se por uma grande diversidade de funções para as quais os professores precisam de mobilizar conhecimentos de diferentes áreas. Os professores ensinam, orientam para o estudo, ajudam individualmente os alunos, regulam relações com e entre diferentes interlocutores, preparam métodos de trabalho, conteúdos de aprendizagem e materiais, procedem a diferentes modalidades de avaliação das aprendizagens, dos seus pares e das organizações educativas onde trabalham, organizam espaços, concebem inúmeros projetos em diferentes contextos e com enquadramentos diversos, etc. Para o desempenho destas funções os professores organizam os seus saberes em torno de três áreas: a da metodologia, que envolve o domínio de técnicas e de instrumentos de ação para a gestão do currículo dos seus alunos; a área disciplinar, que diz respeito à área do saber que ensinam e fazem aprender; e a científica, que respeita às ciências da educação e à pedagogia, enquadradas por outras ciências como a psicologia ou conhecimentos básicos de neurociência.

Como atividade intelectual e científica, o trabalho do professor não se reduz à atividade letiva e às reuniões. A gestão do currículo pelo qual o professor está responsável exige leituras, escolha e produção de materiais, permanentes e sistemáticas avaliações para regular o seu trabalho e o dos seus alunos. E é por isso que a qualidade do seu trabalho na sala de aula depende das condições que tem para esse trabalho invisível. Para se atualizar, o professor precisa de comprar livros, assistir a espetáculos, visitar museus e exposições, já para não falar das ações de formação contínua essenciais para a sua progressão na carreira, mas sobretudo para a melhoria da sua ação e, consequentemente, das aprendizagens.

Um professor a lecionar no 3.º ciclo ou no ensino secundário pode ter entre duas a nove turmas, dependendo do número de tempos letivos da(s) disciplinas que leciona, podendo, também, ter entre um a quatro níveis de ensino (anos de escolaridade). Não obstante as diferenças existentes entre quem regula as aprendizagens de mais de uma centena de alunos ou de cerca de uma vintena, o tempo de trabalho individual é praticamente o mesmo (cerca de 9 tempos letivos). E – pasme-se – como os tempos letivos, em muitas escolas, equivalem a sequências de 45 minutos, os professores têm de devolver os minutos sobrantes, minutos esses que lhes são necessários para desligar equipamentos, arrumar e fechar salas, deslocar-se para nova sala (às vezes, outra escola do mesmo agrupamento) e registar sumários e assiduidade dos alunos nas plataformas digitais. Quer isto dizer que o cálculo de 15 minutos que tem de “repor” em apoios educativos se converte numa das formas de sobretrabalho.

Outra modalidade são as inúmeras reuniões não contabilizadas no seu horário, geralmente, tal como para a formação contínua, no tempo de descanso. Tenho para mim que este problema de sobretrabalho – de que os alunos também são vítimas – exigirá de todos uma reflexão sobre a organização do currículo, não só nos tempos e nos espaços, mas noutros modos de trabalho que obrigarão a rever a organização escolar, a gestão do currículo, e os métodos de ensino e de aprendizagem, ou seja, importa mudar a “gramática” da escola.

Ora, a autonomia das escolas é essencial para a implementação das reformas educativas, mas esta só é efetiva se envolver e preparar os professores, criando para isso tempos e modos que lhes permitam refletir e trabalhar num processo de aprendizagem coletiva, que é muito mais do que executar orientações ou usar acriticamente recursos prontos a usar. Sendo as escolas a “oficina da humanidade”, como escreveu Comenius, o trabalho dos professores é fundamental para as múltiplas missões que a escola tem a cumprir e vão muito para lá da transmissão de conhecimentos, não obstante a sua centralidade em qualquer área de competências do perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória.

Os professores são, por isso, profissionais altamente qualificados a quem se exige para entrar na carreira o grau de mestre. Independentemente de terem ou não vínculo laboral, o trabalho dos professores, na sua avaliação pelos pares, é escrutinado no modo como prepara e organiza as suas aulas; no modo como organiza as aprendizagens em conselho de turma e no seu departamento curricular, numa permanente articulação horizontal e vertical do currículo dos seus alunos; nas atividades que desenvolve com os grupos de alunos para ensinar e fazer aprender, avaliando contínua e sistematicamente as aprendizagens; nos contributos que dá para a concretização dos objetivos e metas do projeto educativo da sua escola e das atividades que promove no âmbito dos planos anuais de atividades; no grau de compromisso que evidencia ao participar nas estruturas de coordenação educativa; e por fim, mas não menos importante, na atualização do seu conhecimento profissional e do seu contributo para a melhoria da ação educativa.

Por tudo isto, custa-me assistir ao discurso autovitimizador de muitos professores, que têm tido razões para se sentirem pouco reconhecidos pelas sucessivas tutelas, pelas famílias, pelos alunos, enfim, pela sociedade, de um modo geral. Também me entristece que muitos resistam ao imperativo de pensar a mudança, abraçando novos modos de trabalho sem deixar de sustentar as suas práticas em anos de experiências que se revelaram válidas e eficazes. Discordo do mantra de que é necessário “valorizar a profissão docente”. Pelo atrás exposto, esta já é valorizada. O essencial é continuar a combater a precariedade, a remunerar os professores proporcionalmente ao que lhes é exigido, a dar-lhes condições de trabalho que promovam a conciliação trabalho – família e, não menos importante, a reconhecer que os percursos profissionais dos docentes são mais do que uma licenciatura, um grupo de recrutamento e anos de serviço.

Em suma, a tutela tem pela frente o desafio de não só recrutar, formar e atrair novos professores, para substituir uma classe docente envelhecida, mas de lhes garantir uma formação de qualidade que concilie a formação científica proporcionada pelas instituições de ensino superior com a imersão profissional dos jovens professores nos exigentes contextos profissionais que os acolhem.

Quanto aos professores mais experientes, neste dia que lhes é dedicado, espera-se que renovem o compromisso com a escola pública e com os seus alunos, com a humildade de quem está disposto a continuar a aprender, mas com a orgulhosa convicção de que fazem parte de uma classe profissional de alto valor acrescentado. E sobretudo que o façam com esperança, não a de esperar, mas a de esperançar, para que “construamos juntos o inédito viável”, como escreveu Paulo Freire.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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