Cometemos o pecado de esquecer os avós maltratados

Cheguei à conclusão que é uma tortura acrescida imaginar que quando se morre os maltratantes ainda herdam os nossos bens, sejam muitos ou poucos.

Foto
EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN

Querida Filha,

Mesmo a quilómetros de distância deves pressentir a fúria que sinto. Não me envolvi numa cena de pancadaria, mas acredita que tenho pena.

Como nunca sabes por onde ando, vou situar a cena: bomba de gasolina da Mealhada. Saí para comprar o PÚBLICO e vi um carro parado, com umas pessoas cá fora a conversarem e, lá dentro — no lugar do passageiro — um avô já velhinho. Quando ia a passar, ouvi o senhor perguntar pela janela ao neto, homem dos seus 40 anos, quando é que seguiam caminho, porque tinha medo que chegassem atrasados. Não sei para onde iam, nem mais nada sobre o contexto, mas foi a resposta do troglodita que me pôs fora de mim. Num tom de voz irascível, do mais profundo desprezo, respondeu:

— Aí agora estás com pressa? Mas com o tempo que levas na casa de banho, não te preocupas, pois não?

E, com um riso sarcástico, e sem que quem estava com ele o mandasse calar, repetiu vezes sem conta a história da casa de banho, em termos mais abjectos, que me escuso a repetir.

Que raiva senti!

Ana, escrevemos sobre birras de avós, de pais e netos, de conflitos de gerações, mas cometemos o pecado de esquecer os avós maltratados, abusados pela sua própria família, roubados no dia em que recebem a pensão, atirados para um canto quando não têm já nada para oferecer, tão indefesos como as crianças sobre as quais (e bem) viramos tantas vezes os holofotes.

Estragou-me o dia. Saí dali a pensar em formas de vingança, em como podem retaliar contra quem os trata mal, e cheguei à conclusão que é uma tortura acrescida imaginar que quando se morre os maltratantes ainda herdam os nossos bens, sejam muitos ou poucos. Sabes que em Portugal é quase impossível deserdar um filho? Só em tribunal, com provas e testemunhas, podem excluí-los dos dois terços da herança (legítima) que automaticamente vai para o viúvo/a e os filhos, independentemente da vontade do próprio. Por outras palavras, uma maratona difícil quando já se está limitado e dependente.

Por isso a minha birra de hoje é para que se altere a lei, seguindo o modelo de países, como no Reino Unido, onde uma pessoa pode dispor de tudo o que possui e fazer um testamento a favor de quem lhe apetecer, família ou não-família.

Parece-me muito mais lógico e justo. Ai meu Deus, e com que alegria deserdava este tipo!


Querida Mãe,

O maior problema em Portugal é que, a maioria, nem tem herança para deixar! Mas percebo a sua ideia.

Tenho de lhe dizer que não me surpreende nada o que me conta porque quando entro nalgumas escolas e oiço a maneira como falam com as crianças — exactamente com esse tom de desprezo e desvalorização —, percebo que ainda estamos muito longe de, como sociedade, respeitarmos os mais vulneráveis. Sejam os mais velhos ou os mais novos.

Sem querer desculpar ninguém, muito menos o alvo da sua justificada fúria, é preciso ter em conta que esses comportamentos resultam, muitas vezes, do cansaço extremo dos cuidadores, da falta de recursos emocionais e económicos para lidarem com o desgaste imenso que é tomar conta de alguém a tempo inteiro.

A realidade dos cuidadores informais em Portugal é assustadora, mas dá tanto jeito ao Estado que a responsabilidade pelos mais frágeis fique exclusivamente sobre os ombros das famílias, pois não há grande vontade de encontrar formas de as apoiar. A desculpa é a de sempre, o dinheiro não chega.

Mas descanse, mãe, prometo não falar assim consigo, e ter a mesma paciência que a mãe teve para comigo, quando eu era pequenina. O mesmo cuidado, com que ainda hoje cuida de mim.

Quanto à sua luta para mudar a lei, faça uma petição, que assino imediatamente por baixo.


Exclusivo PÚBLICO/Folha de S.Paulo
O PÚBLICO respeitou a composição do texto original, com excepção de algumas palavras ou expressões não usadas em português de Portugal.

Sugerir correcção
Comentar