Todos os discursos negacionistas tendem invariavelmente para o ridículo...

Não compreender a angústia justificada perante o futuro, que assalta as novas gerações, que são as gerações dos nossos filhos e netos, é sinal de profunda insensibilidade.

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“E agora que cheguei aos 50 anos, permitam-me um conselho de velho: todos os discursos apocalípticos tendem invariavelmente para o ridículo. A razão é muito simples: foram desmentidos 100% das vezes.” Esta é uma frase do artigo de João Miguel Tavares publicado neste jornal no dia 30 de Setembro, a propósito das “meninas que atiram tinta verde ao ministro”…

Vivemos tempos de incerteza provocados pelas alterações climáticas, pela degradação ambiental, pela ameaça nuclear, pela guerra, pela inteligência artificial e pelo maior risco de eventos inesperados, como novas pandemias. Muitas das consequências destas mudanças não são previsões, são já uma realidade do nosso quotidiano.

Em 28 de Julho de 2022 a Organização das Nações Unidas decretou um novo direito, o direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável, no entanto nós sabemos, e os jovens também sabem, que esse ambiente já não existe, apesar de termos melhorado alguns indicadores.

Crescemos de mil milhões de pessoas para oito mil milhões em 220 anos e, desde 1970, excedemos a capacidade de regeneração do planeta. Nove em cada dez crianças, a nível global, respiram ar que excede os limites de poluição estabelecidos pela Organização Mundial de Saúde. O planeta já sofreu um aumento de temperatura de 1,2ºC e, se as políticas actuais não se modificarem, estima-se que a temperatura do planeta sofrerá um aumento de 2,7ºC em 2100.

O mês de Julho deste ano foi o mês mais quente alguma vez registado. No Canadá, também este ano, já ardeu uma extensão de florestas equivalente a 17 milhões de campos de futebol. Na Líbia morreram 11.300 pessoas pelas inundações. As temperaturas extremas causam a morte de cerca de cinco milhões de pessoas por ano e atingem particularmente as populações mais vulneráveis. Actualmente já existem 55 milhões de pessoas afectadas pela seca e estima-se que 75% da população mundial poderá ser afectada, em 2050. Em média 150 espécies são extintas por dia e existe um milhão de espécies em risco de extinção. O secretário-geral da ONU, António Guterres, dizia: “A época do aquecimento global acabou, entramos na era da ebulição global.”

Isto não é catastrofismo, é a realidade. Não vale a pena mergulhar a cabeça na areia. Vivemos a época do Antropoceno, em que a acção humana tem um impacto sobre o planeta, que se pode tornar incontrolável. Não é a sobrevivência do planeta que está em questão, é a sobrevivência do Homo sapiens. A vida existe sobre a terra há 3,5 biliões de anos, a espécie humana só existe há 200.000 anos.

Este é o desafio mais complexo que enfrentamos, que exige a colaboração de todos, a todos os níveis, incluindo nos nossos comportamentos individuais. Esta não é uma batalha dos jovens nem dos ambientalistas, tem de ser uma luta de todos. Este não é um problema só dos jovens, é um problema também para os que têm 50 anos agora.

Os catastrofistas são pessoas que desistiram, eu não desisti. Tenho uma carreira de 45 anos dedicados a cuidar de doentes, e sempre dei mais atenção aos factores socioeconómicos e aos comportamentos de risco como determinantes da saúde, no entanto, foi a determinação dos meus dois filhos, que se tornaram vegan por razões ecológicas, que me fez despertar para as determinantes ambientais e decidir agir. Desde então fiz o meu caminho de aprendizagem e interiorizei a convicção de que a minha geração não tem o direito de assegurar o seu bem-estar à custa de comprometer o futuro das próximas gerações.

Por outro lado, sempre defendi que nós, médicos, para além de sermos cuidadores, temos a obrigação de sermos também advogados dos doentes, e, quando temos consciência de que já morrem actualmente 13 milhões de pessoas por factores ambientais, torna-se uma obrigação ética envolvermo-nos nesta luta. Foi essa a motivação que me levou a reunir, no ano passado, as sociedades de Medicina Interna europeias para apelar aos profissionais de saúde que se envolvam nesta luta. Neste ano, este apelo vai também ser assumido por todas as sociedades de Medicina Interna dos países de língua oficial espanhola e portuguesa.

Foi a mesma motivação que me levou a fundar, em conjunto com o professor João Queiroz e Melo e o jornalista José Vítor Malheiros, o Conselho Português para a Saúde e Ambiente, em Outubro de 2022, associação que já integra 63 das principais organizações relacionadas com a saúde, com o objectivo de criar uma voz comum nos temas da relação entre saúde e ambiente.

Naturalmente que condeno todas as manifestações violentas, ainda por cima contra um ministro que tem mostrado empenhamento, concordo com a atitude anticatastrofista do jornalista, mas parece-me que todos os discursos negacionistas tendem invariavelmente para o ridículo e são um perigoso convite à inacção. A crença em que o génio humano consegue sempre inventar soluções para os problemas, actualmente, não passa de um mito. Não compreender a angústia justificada perante o futuro, que assalta as novas gerações, que são as gerações dos nossos filhos e netos, é sinal de profunda insensibilidade. Todos os que contribuem activamente para que as próximas gerações não tenham direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável deviam sentir-se manchados pela cor da vergonha.

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