A inteligência artificial na senda da ovelha Dolly

O receio de que a inteligência artificial ultrapasse a inteligência “natural” não deverá travar esta tecnologia que nos poderá ser tão útil.

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A inteligência artificial (IA) entrou de rompante no espaço e na discussão públicas recentemente, com o aparecimento do ChatGPT. O que muitos podem desconhecer é que os seus princípios começaram a ser desenvolvidos após a Segunda Guerra Mundial e o próprio nome e conceito datam dos anos 50 do século XX. Neste caso, como noutros, a sociedade não estava preparada nem discutiu atempadamente um tema que certamente a revolucionará, e foi apanhada de surpresa com um facto consumado.

Esta situação tem semelhanças com o que se passou com a clonagem da ovelha Dolly, pelo grupo de Ian Wilmut, do Instituto Roslin, em Edimburgo. A sua publicação, em 1997 na revista Nature, foi o culminar de vários anos de investigação e também confrontou a sociedade com uma conquista transformadora: o nascimento de uma ovelha clonada a partir de uma célula adulta e diferenciada. Os estudos pioneiros que permitiram a clonagem da ovelha Dolly foram publicados muitos anos antes, na década de 50 do século XX, fruto de investigações feitas em rãs.

Logo após as notícias sobre a ovelha mais famosa do mundo terem começado a surgir, sucederam-se debates sobre ética e restrições ao uso da clonagem, muitas declarações de políticos e uma discussão a nível global que deveria ter ocorrido muito tempo antes, pois era uma questão de tempo até se conseguir este marco científico.

Volvidos 26 anos, a clonagem manteve-se, felizmente, aplicada apenas aos animais, exceto no célebre caso do investigador sul-coreano Hwang Woo Suk, que em 2004 publicou na revista Science que tinha obtido um embrião humano clonado. Este estudo foi rapidamente envolto em polémica, tendo sido retirado de publicação e este investigador acusado de fraude e violação dos princípios éticos.

Também com a inteligência artificial estamos agora a começar o debate que não fizemos de antemão sobre quais as consequências que poderá ter no futuro da sociedade. Não sendo já uma opção travar o que quer que seja, se é que alguma vez isso tenha sido sequer uma (boa) opção, devemos discutir quais os limites aceitáveis e as regras que deveremos impor, incluindo legislação, para que a inteligência artificial esteja ao serviço do progresso da sociedade.

Em relação ao receio de que a IA ultrapasse a inteligência “natural”, parece inevitável que, em certo sentido, isso já esteja a acontecer. Mas mesmo este receio não deverá travar a tecnologia que nos poderá ser tão útil. De facto, já começaram a surgir aplicações extremamente benéficas, por exemplo ao nível da saúde, com a inteligência artificial a demonstrar ser capaz de fazer diagnósticos de cancro muito fiáveis, sem erros derivados do cansaço ou distração e numa fração do tempo de um ser humano experiente.

Devemos, sim, usar as nossas capacidades e discernimento, como criadores desta nova forma de inteligência, para a aplicar a nosso favor e de forma a não interferir com princípios basilares da nossa sociedade ou a condicionar-nos. Penso também ser fundamental formar sobretudo as novas gerações, para que compreendam os benefícios e riscos desta tecnologia e se mantenham críticos quanto à forma como a aplicamos. Ou seja, que continuem a desenvolver e usar a sua inteligência e espírito crítico e livre, pois será sempre uma garantia adicional para a humanidade.

Em relação a outras tecnologias transformadoras, é inevitável (e também desejável) que venham a surgir no futuro. Aliás, há certamente várias que já foram criadas e que irão levantar questões complexas que ainda não começámos a discutir. É, por isso, fundamental que a ciência e a tecnologia estejam o mais próximas possível do público e que este se informe sobre os avanços e questões éticas levantadas. É que, qualquer tecnologia, pode eventualmente ser subvertida e usada para fins para a qual não foi pensada.

Neste sentido, a divulgação da ciência junto do público é um esforço que deve continuar e ser aprofundado para que a sociedade acompanhe desde cedo os desenvolvimentos que a podem revolucionar e se prepare atempadamente para compreender e regulamentar as suas aplicações.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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