Prova russa de “genocídio” ucraniano no Donbass é “impossível porque manifestamente inexistente”

Francisco Pereira Coutinho diz que a Ucrânia quer uma decisão do TIJ para “certificar existência de uma agressão” da Rússia e “legitimar” os pedidos de apoio militar ao Ocidente.

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Membros do exército da autoproclamada República Popular do Donetsk, em 2020, junto a um tanque ucraniano destruído Baz Ratner/Reuters
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Na segunda-feira começam as audições no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) às várias partes envolvidas no caso da denúncia ucraniana que rejeita a justificação que a Rússia apresentou para invadir a Ucrânia, quando disse que tinha de evitar um “genocídio” no Leste ucraniano.

Em declarações ao PÚBLICO, Francisco Pereira Coutinho, professor associado com agregação na Nova School of Law, explica quais os objectivos do Governo ucraniano, esclarece o alcance das decisões do tribunal e sublinha as dificuldades que o Kremlin vai ter para defender as suas alegações.

Para que serve esta fase do processo no TIJ e o que é que podemos esperar das objecções que vão ser apresentadas pelos responsáveis russos?

O Tribunal Internacional de Justiça é o principal órgão judicial das Nações Unidas. A sua jurisdição não é, contudo, obrigatória. Por outras palavras, só dirime litígios entre Estados que aceitem ser julgados. Uma vez que a Rússia não aceita genericamente a jurisdição do Tribunal, a Ucrânia demandou-a ao abrigo de uma competência jurisdicional específica – reconhecida pelos dois Estados – que lhe permite resolver conflitos emergentes da aplicação da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime do Genocídio (1948).

Alegou para o efeito ter sido vítima de uma agressão baseada na alegação fantasiosa de que estaria a cometer um genocídio contra o povo russo do Donbass. A Rússia, em contrapartida, considera estar em causa uma acção judicial abusiva e, por consequência, inadmissível, que tem como propósito último obter uma decisão sobre o uso da força e não sobre a aplicação da convenção sobre o crime de genocídio. O Tribunal Internacional de Justiça terá agora de decidir se é competente para se pronunciar sobre o caso.

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Francisco Pereira Coutinho é professor associado com agregação na Nova School of Law DR

Que provas serão exigidas à Rússia (para provar o perigo de “genocídio”) e à Ucrânia (para demonstrar que a posição russa não tem base jurídica e factual)?
Dada a forma ardilosa como a acção judicial foi proposta pela Ucrânia, fundada na alegação de que não cometeu qualquer genocídio, caberá à Rússia fazer prova documental e testemunhal – impossível porque manifestamente inexistente – dos factos relativos à existência de um crime de genocídio.

Mas a questão jurídica fundamental deste caso diz respeito a saber se, ao abrigo da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime do Genocídio, os Estados podem usar a força para impedir um genocídio. O tribunal não perderá seguramente esta oportunidade para declarar a inexistência de uma tal excepção à proibição do uso da força não prevista na Carta das Nações Unidas.

Não tendo meios à sua disposição para impor as decisões e resoluções que toma, que consequência terá verdadeiramente este julgamento para ambas as partes e para o curso da guerra?
A 16 de Março de 2022, o Tribunal Internacional de Justiça decretou um conjunto de medidas provisórias vinculativas, entre as quais se incluía a ordem de suspensão imediata das operações militares na Ucrânia, que foram manifestamente ignoradas. O bloqueio russo do Conselho de Segurança das Nações Unidas impede-o, infelizmente, de executar a decisão do Tribunal Internacional de Justiça. O desrespeito pela justiça internacional deve servir de fundamento à adopção de medidas sancionatórias unilaterais (contramedidas). É lamentável que Estados de direito democráticos, como o Brasil, não o façam e se satisfaçam com inconsequentes apelos à paz.

A Ucrânia já tinha apresentado, em 2017, uma queixa contra à Rússia, no mesmo tribunal, acusando-a de apoiar separatistas pró-russos, de ocupar ilegalmente a Crimeia e de estar a levar a cabo uma “campanha de erradicação cultural” dos tártaros da Crimeia. Existindo pontos de contacto entre as duas denúncias, eles reforçam ou fragilizam a posição ucraniana?
O recurso sucessivo à justiça internacional constitui um exemplo notável de lawfare; isto é, da utilização estratégica de instrumentos jurídicos para obter uma vantagem geopolítica ou militar em apoio ou em substituição de um meio cinético tradicional.

A Ucrânia pretende, com estas acções, obter uma decisão judicial, por definição independente e imparcial, que certifique a existência de uma agressão com o fim de legitimar junto dos governos e das opiniões públicas ocidentais os constantes e crescentes pedidos de apoio militar, bem como de incremento das sanções internacionais contra a Rússia.

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