Quem paga a inflação?

Parece que tudo tem aumentado, menos algo sagrado e polémico: os salários. Diz que é pecado aumentar salários em tempos de inflação.

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Os últimos três anos têm sido complicados para as carteiras portuguesas. Veio a pandemia e toda a incerteza associada. Quando tudo parecia aliviar, a Rússia invadiu a Ucrânia e os preços dos bens essenciais dispararam. Deixamos de acreditar que a inflação seria um fenómeno temporário e o BCE interveio (e intervém) com a subida das taxas de juro – com isto, a corda ao pescoço apertou ainda mais.

Parece que tudo tem aumentado, menos algo sagrado e polémico: os salários. Diz que é pecado aumentar salários em tempos de inflação, dada a tão temida (e tão usada nos argumentos das empresas) espiral inflacionária: se aumentarmos os salários, aumentam os custos para as empresas, que terão de aumentar novamente os preços. E como aumentaram os preços, temos de aumentar outra vez os salários e, portanto, os preços. E assim vai indo.

Tudo isto seria verdade se a inflação que vivemos actualmente tivesse sido provocada por um aumento no consumo, no investimento… não é o caso. Temos um problema de especulação que vem desde a pandemia e que foi exacerbado pela guerra na Ucrânia – houve um medo generalizado da escassez de bens essenciais e de matérias-primas e, portanto, houve uma subida de preços. E agora, para agravar as coisas, sabemos que mesmo que os preços das commodities baixem, há uma rigidez que tende a impedir a descida dos preços.

A distinção entre salário nominal e real é importante neste caso. Se a inflação é de 4% e o aumento salarial nominal é de 2%, o trabalhador continua a perder 2% em termos de poder de compra – para, pelo menos o manter, o aumento nominal teria de ser igual à inflação. Agora, podem dizer-me que aumentar os salários em 2% pode levar a inflação para os 5% - poder pode, mas mesmo assim o trabalhador perde 3% em vez dos 5% da inflação caso o salário se tivesse mantido intocado.

Claro que, para aumentarmos os salários reais, temos de registar um aumento na produtividade – e bem sabemos que é o calcanhar de Aquiles da economia portuguesa (e toda uma outra história). Por exemplo, no último ano, e segundo dados do Banco de Portugal, as remunerações por trabalhador tiveram uma variação homóloga de 1.6 pontos percentuais, enquanto a produtividade variou em 3.3 pontos percentuais.

No geral, desde o início do milénio, existe alguma margem em termos de produtividade para conseguirmos aumentar (ainda que muito ligeiramente) os salários reais dos nossos trabalhadores.

Esta ideia da espiral inflacionária dos salários tem sido debatida há décadas e ainda não há evidência sólida o suficiente que sustente a sua existência na prática – ideia corroborada pela OCDE no seu relatório sobre o emprego de 2023. Isto porque as margens das empresas não dependem apenas do custo da mão-de-obra e o aumento dos custos dos salários pode ser absorvido por uma parte da margem em vez de gerar uma subida quase automática dos preços (agora, se querem ou não sacrificar as margens em prol do bem-estar económico dos trabalhadores, já é outra história).

A espiral inflacionária pode ser um mito, mas o aumento de salários deixaria na mesma nas mãos das empresas a decisão de quem paga crise: os trabalhadores ou os lucros. Bem sei que há uma obrigação contratual para com os accionistas para maximizar o lucro, mas talvez pudéssemos começar a valorizar a questão ética da coisa, quando falamos de empresas com dimensão para tal e quando a responsabilidade social corporativa começa a ganhar cada vez mais espaço.

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